Prosa – Quarentena https://quarentena.org Curta sua casa: Indicamos produtos e serviços pagos e gratuitos pra que você aproveite melhor sua casa. :) Sun, 23 Aug 2020 23:52:37 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=6.6.1 https://quarentena.org/wp-content/uploads/2020/04/cropped-logo2_quarentena_512x512px-1-32x32.png Prosa – Quarentena https://quarentena.org 32 32 “O evangelho segundo Jesus Cristo”, de José Saramago https://quarentena.org/indicacoes/o-evangelho-segundo-jesus-cristo-jose-saramago/ https://quarentena.org/indicacoes/o-evangelho-segundo-jesus-cristo-jose-saramago/#respond Thu, 21 May 2020 21:14:56 +0000 https://quarentena.org/?post_type=product&p=5891 Evangelho segundo Jesus Cristo é uma obra de ficção, um romance magistral, escrita pelo vencedor do prêmio Nobel de Literatura de 1998, José Saramago: "O filho de José e de Maria nasceu como todos os filhos dos homens, sujo de sangue de sua mãe, viscoso das suas mucosidades e sofrendo em silêncio. Chorou porque o fizeram chorar, e chorará por esse mesmo e único motivo."]]> Apresentação de O Evangelho segundo Jesus Cristo

“O filho de José e de Maria nasceu como todos os filhos dos homens, sujo de sangue de sua mãe, viscoso das suas mucosidades e sofrendo em silêncio. Chorou porque o fizeram chorar, e chorará por esse mesmo e único motivo.”

Todos conhecem a história do filho de José e Maria, mas nesta narrativa ela ganha tanta beleza e tanta pungência que é como se estivesse sendo contada pela primeira vez. Nas palavras de José Paulo Paes: “Interessado menos na onipotência do divino que na frágil mas tenaz resistência do humano, a arte magistral de Saramago excele no dar corpo às preliminares e à culminância do drama da Paixão”.

 

Trecho da obra O Evangelho segundo Jesus Cristo

Já que muitos empreenderam compor
uma narração dos factos que entre nós
se consumaram, como no-los transmitiram
os que desde o princípio foram testemunhas
oculares e se tornaram servidores
da Palavra, resolvi eu também,
depois de tudo ter investigado cuidadosamente
desde a origem, expor-tos por
escrito e pela sua ordem, ilustre Teófilo,
a fim de que reconheças a solidez da
doutrina em que foste instruído.
LUCAS, 1, 1-4

Quod scripsi, scripsi.
PILATOS

 

O sol mostra-se num dos cantos superiores do rectângulo, o que se encontra à esquerda de quem olha, representando, o astro-rei, uma cabeça de homem donde jorram raios de aguda luz e sinuosas labaredas, tal uma rosa-dos-ventos indecisa sobre a direcção dos lugares para onde quer apontar, e essa cabeça tem um rosto que chora, crispado de uma dor que não remite, lançando pela boca aberta um grito que não poderemos ouvir, pois nenhuma destas coisas é real, o que temos diante de nós é papel e tinta, mais nada. Por baixo do sol vemos um homem nu atado a um tronco de árvore, cingidos os rins por um pano que lhe cobre as partes a que chamamos pudendas ou vergonhosas, e os pés tem-nos assentes no que resta de um ramo lateral cortado, porém, por maior firmeza, para que não resvalem desse suporte natural, dois pregos os mantêm, cravados fundo. Pela expressão da cara, que é de inspirado sofrimento, e pela direcção do olhar, erguido para o alto, deve de ser o Bom Ladrão. O cabelo, todo aos caracóis, é outro indício que não engana, sabendo-se que anjos e arcanjos assim o usam, e o criminoso arrependido, pelas mostras, já está no caminho de ascender ao mundo das celestiais criaturas. Não será possível averiguar se este tronco ainda é uma árvore, apenas adaptada, por mutilação selectiva, a instrumento de suplício, mas continuando a alimentar-se da terra pelas raízes, porquanto toda a parte inferior dela está tapada por um homem de barba comprida, vestido de ricas, folgadas e abundantes roupas, que, tendo embora levantada a cabeça, não é para o céu que olha. Esta postura solene, este triste semblante, só podem ser de José de Arimateia, que Simão de Cirene, sem dúvida outra hipótese possível, após o trabalho a que o tinham forçado, ajudando o condenado no transporte do patíbulo, conforme os protocolos destas execuções, fora à sua vida, muito mais preocupado com as consequências do atraso para um negócio que trazia aprazado do que com as mortais aflições do infeliz que iam crucificar. Ora, este José de Arimateia é aquele bondoso e abastado homem que ofereceu os préstimos de um túmulo seu para nele ser depositado o corpo principal, mas a generosidade não lhe servirá de muito na hora das santificações, sequer das beatificações, pois não tem, a envolver-lhe a cabeça, mais do que o turbante com que sai à rua todos os dias, ao contrário desta mulher que aqui vemos em plano próximo, de cabelos -soltos sobre o dorso curvo e dobrado, mas toucada com a glória suprema duma auréola, no seu caso recortada como um bordado doméstico. De certeza que a mulher ajoelhada se chama Maria, pois de antemão sabíamos que todas quantas aqui vieram juntar-se usam esse nome, apenas uma delas, por ser ademais Madalena, se distingue onomasticamente das outras, ora, qualquer observador, se conhecedor bastante dos factos elementares da vida, jurará, à primeira vista, que a mencionada Madalena é esta precisamente, porquanto só uma pessoa como ela, de dissoluto passado, teria ousado apresentar-se, na hora trágica, com um decote tão aberto, e um corpete de tal maneira justo que lhe faz subir e altear a redondez dos seios, razão por que, inevitavelmente, está atraindo e retendo a mirada sôfrega dos homens que passam, com grave dano das almas, assim arrastadas à perdição pelo infame corpo. É, porém, de compungida tristeza a expressão do seu rosto, e o abandono do corpo não exprime senão a dor de uma alma, é certo que escondida por carnes tentadoras, mas que é nosso dever ter em conta, falamos da alma, claro está, esta mulher poderia até estar inteiramente nua, se em tal preparo tivessem escolhido representá-la, que ainda assim haveríamos de demonstrar-lhe respeito e homenagem. Maria Madalena, se ela é, ampara, e parece que vai beijar, num gesto de compaixão intraduzível por palavras, a mão doutra mulher, esta sim, caída por terra, como desamparada de forças ou ferida de morte. O seu nome também é Maria, segunda na ordem de apresentação, mas, sem dúvida, primeiríssima na importância, se algo significa o lugar central que ocupa na região inferior da composição. Tirando o rosto lacrimoso e as mãos desfalecidas, nada se lhe alcança a ver do corpo, coberto pelas pregas múltiplas do manto e da túnica, cingida na cintura por um cordão cuja aspereza se adivinha. É mais idosa do que a outra Maria, e esta é uma boa razão, provavelmente, mas não a única, para que a sua auréola tenha um desenho mais complexo, assim, pelo menos, se acharia autorizado a pensar quem, não dispondo de informações precisas acerca das precedências, patentes e hierarquias em vigor neste mundo, estivesse obrigado a formular uma opinião. Porém, tendo em conta o grau de divulgação, operada por artes maiores e menores, destas iconografias, só um habitante doutro planeta, supondo que nele não se houvesse repetido alguma vez, ou mesmo estreado, este drama, só esse em verdade inimaginável ser ignoraria que a afligida mulher é a viúva de um carpinteiro chamado José e mãe de numerosos filhos e filhas, embora só um deles, por imperativos do destino ou de quem o governa, tenha vindo a prosperar, em vida mediocremente, mas maiormente depois da morte. Reclinada sobre o seu lado esquerdo, Maria, mãe de Jesus, esse mesmo a quem acabamos de aludir, apoia o antebraço na coxa de uma outra mulher, também ajoelhada, também Maria de seu nome, e afinal, apesar de não lhe podermos ver nem fantasiar o decote, talvez verdadeira Madalena. Tal como a primeira desta trindade de mulheres, mostra os longos cabelos soltos, caídos pelas costas, mas estes têm todo o ar de serem louros, se não foi pura casualidade a diferença do traço, mais leve neste caso e deixando espaços vazios no sentido das madeixas, o que, obviamente, serviu ao gravador para aclarar o tom geral da cabeleira representada. Com tais razões não pretendemos afirmar que Maria Madalena tivesse sido, de facto, loura, apenas nos estamos conformando com a corrente de opinião maioritária que insiste em ver nas louras, tanto as de natureza como as de tinta, os mais eficazes instrumentos de pecado e perdição. Tendo sido Maria Madalena, como é geralmente sabido, tão pecadora mulher, perdida como as que mais o foram, teria também de ser loura para não desmentir as convicções, em bem e em mal adquiridas, de metade do género humano. Não é, porém, por parecer esta terceira Maria, em comparação com a outra, mais clara na tez e no tom do cabelo, que insinuamos e propomos, contra as arrasadoras evidências de um decote profundo e de um peito que se exibe, ser ela a Madalena. Outra prova, esta fortíssima, robustece e afirma a identificação, e vem a ser que a dita mulher, ainda que um pouco amparando, com distraída mão, a extenuada mãe de Jesus, levanta, sim, para o alto o olhar, e este olhar, que é de autêntico e arrebatado amor, ascende com tal força que parece levar consigo o corpo todo, todo o seu ser carnal, como uma irradiante auréola capaz de fazer empalidecer o halo que já lhe está rodeando a cabeça e reduzindo pensamentos e emoções. Apenas uma mulher que tivesse amado tanto quanto imaginamos que Maria Madalena amou poderia olhar desta maneira, com o que, derradeiramente, fica feita a prova de ser ela esta, só esta, e nenhuma outra, excluída portanto a que ao lado se encontra, Maria quarta, de pé, meio levantadas as mãos, em piedosa demonstração, mas de olhar vago, fazendo companhia, neste lado da gravura, a um homem novo, pouco mais que adolescente, que de modo amaneirado a perna esquerda flecte, assim, pelo joelho, enquanto a mão direita, aberta, exibe, numa atitude afectada e teatral, o grupo de mulheres a quem coube representar, no chão, a acção dramática. Este personagem, tão novinho, com o seu cabelo aos cachos e o lábio trémulo, é João. Tal como José de Arimateia, também esconde com o corpo o pé desta outra árvore que, lá em cima, no lugar dos ninhos, levanta ao ar um segundo homem nu, atado e pregado como o primeiro, mas este é de cabelos lisos, deixa pender a cabeça para olhar, se ainda pode, o chão, e a sua cara, magra e esquálida, dá pena, ao contrário do ladrão do outro lado, que mesmo no transe final, de sofrimento agónico, ainda tem valor para mostrar-nos um rosto que facilmente imaginamos rubicundo, corria-lhe bem a vida quando roubava, não obstante a falta que fazem as cores aqui. Magro, de cabelos lisos, de cabeça caída para a terra que o há-de comer, duas vezes condenado, à morte e ao inferno, este mísero despojo só pode ser o Mau Ladrão, rectíssimo homem afinal, a quem sobrou consciência para não fingir acreditar, a coberto de leis divinas e humanas, que um minuto de arrependimento basta para resgatar uma vida inteira de maldade ou uma simples hora de fraqueza. Por cima dele, também chorando e clamando como o sol que em frente está, vemos a lua em figura de mulher, com uma incongruente argola a enfeitar-lhe a orelha, licença que nenhum artista ou poeta se terá permitido antes e é duvidoso que se tenha permitido depois, apesar do exemplo. Este sol e esta lua iluminam por igual a terra, mas a luz ambiente é circular, sem sombras, por isso pode ser tão nitidamente visto o que está no horizonte, ao fundo, torres e muralhas, uma ponte levadiça sobre um fosso onde brilha água, umas empenas góticas, e lá por trás, no testo duma última colina, as asas paradas de um moinho. Cá mais perto, pela ilusão da perspectiva, quatro cavaleiros de elmo, lança e armadura fazem voltear as montadas em alardes de alta escola, mas os seus gestos sugerem que chegaram ao fim da exibição, estão saudando, por assim dizer, um público invisível. A mesma impressão de final de festa é dada por aquele soldado de infantaria que já dá um passo para retirar-se, levando, suspenso da mão direita, o que, a esta distância, parece um pano, mas que também pode ser manto ou túnica, enquanto dois outros militares dão sinais de imtação e despeito, se é possível, de tão longe, decifrar nos minúsculos rostos um sentimento, como de quem jogou e perdeu. Por cima destas vulgaridades de milícia e de cidade muralhada pairam quatro anjos, sendo dois dos de corpo inteiro, que choram, e protestam, e se lastimam, não assim um deles, de perfil grave, absorto no trabalho de recolher numa taça, até à última gota, o jorro de sangue que sai do lado direito do Crucificado. Neste lugar, a que chamam Gólgota, muitos são os que tiveram o mesmo destino fatal e outros muitos o virão a ter, mas este homem, nu, cravado de pés e mãos numa cruz, filho de José e de Maria, Jesus de seu nome, é o único a quem o futuro concederá a honra da maiúscula inicial, os mais nunca passarão de crucificados menores. É ele, finalmente, este para quem apenas olham José de Arimateia e Maria Madalena, este que faz chorar o sol e a lua, este que ainda agora louvou o Bom Ladrão e desprezou o Mau, por não compreender que não há nenhuma diferença entre um e outro, ou, se diferença há, não é essa, pois o Bem e o Mal não existem em si mesmos, cada um deles é somente a ausência do outro. Tem por cima da cabeça, resplandecente de mil raios, mais do que, juntos, o sol e a lua, um cartaz escrito em romanas letras que o proclamam Rei dos Judeus, e, cingindo-a, uma dolorosa coroa de espinhos, como a levam, e não sabem, mesmo quando não sangram para fora do corpo, aqueles homens a quem não se permite que sejam reis em suas próprias pessoas. Não goza Jesus de um descanso para os pés, como o têm os ladrões, todo o peso do seu corpo estaria suspenso das mãos pregadas no madeiro se não fosse restar-lhe ainda alguma vida, a bastante para o manter erecto sobre os joelhos retesados, mas que cedo se lhe acabará, a vida, continuando o sangue a saltar-lhe da ferida do peito, como já foi dito. Entre as duas cunhas que firmam a cruz a prumo, como ela introduzidas numa escura fenda do chão, ferida da terra não mais incurável que qualquer sepultura de homem, está um crânio, e também uma tíbia e uma omoplata, mas o crânio é que nos importa, porque é isso o que Gólgota significa, crânio, não parece ser uma palavra o mesmo que a outra, mas alguma diferença lhes notaríamos se em vez de escrever crânio e Gólgota escrevêssemos gólgota e Crânio. Não se sabe quem aqui pôs estes restos e com que fim o teria feito, se é apenas um irónico e macabro aviso aos infelizes supliciados sobre o seu estado futuro, antes de se tornarem em terra, pó e coisa nenhuma. Mas também há quem afirme que este é o próprio crânio de Adão, subido do negrume profundo das camadas geológicas arcaicas, e agora, porque a elas não pode voltar, condenado eternamente a ter diante dos olhos a terra, seu único paraíso possível e para sempre perdido. Lá atrás, no mesmo campo onde os cavaleiros executam um último volteio, um homem afasta-se, virando ainda a cabeça para este lado. Leva na mão esquerda um balde e uma cana na mão direita. Na extremidade da cana deve haver uma esponja, é difícil ver daqui, e o balde, quase apostaríamos, contém água com vinagre. Este homem, um dia, e depois para sempre, será vítima de uma calúnia, a de, por malícia ou escárnio, ter dado vinagre a Jesus ao pedir ele água, quando o certo foi ter-lhe dado da mistura que traz, vinagre e água, refresco dos mais soberanos para matar a sede, como ao tempo se sabia e praticava. Vai-se embora, não fica até ao fim, fez o que podia para aliviar as securas mortais dos três condenados, e não fez diferença entre Jesus e os Ladrões, pela simples razão de que tudo isto são coisas da terra, que vão ficar na terra, e delas se faz a única história possível.

A noite ainda tem muito para durar. A candeia de azeite, dependurada de um prego ao lado da porta, está acesa, mas a chama, como uma pequena amêndoa luminosa pairando, mal consegue, trémula, instável, suster a massa escura que a rodeia e enche de cima a baixo a casa, até aos últimos recantos, lá onde as trevas, de tão espessas, parecem ter-se tornado sólidas. José acordou em sobressalto, como se alguém, bruscamente, o tivesse sacudido pelo ombro, mas teria sido ilusão de um sonho logo desvanecido, que nesta casa só ele vive, e a mulher, que não se mexeu, e dorme. Não é seu costume despertar assim a meio da noite, em geral não acorda antes de a larga frincha da porta começar a emergir do escuro, cinzenta e fria. Inúmeras vezes pensara que deveria tapála, nada mais fácil para um carpinteiro, ajustar e pregar uma simples régua de madeira que sobrasse duma obra, porém, a tal ponto se tinha habituado a encontrar na sua frente, mal abria os olhos, aquela vara vertical de luz, anunciadora do dia, que acabara por imaginar, sem ligar ao absurdo da ideia, que, faltando ela, poderia não ser capaz de sair das trevas do sono, as do seu corpo e as do mundo. A frincha da porta fazia parte da casa, como as paredes ou o tecto, como o forno ou o chão de terra apisoada. Em voz baixa, para não acordar a mulher, que continuava a dormir, pronunciou a primeira bênção do dia, aquela que sempre deve ser dita quando se regressa do misterioso país do sono, Graças te dou, Senhor, nosso Deus, rei do universo, que pelo poder da tua misericórdia, assim me restituis, viva e constante, a minha alma. Talvez por não se encontrar igualmente desperto em cada um dos seus cinco sentidos, se é que, então, nesta época de que vimos falando, não estavam as pessoas ainda a aprender alguns deles ou, pelo contrário, a perder outros que hoje nos seriam úteis, José olhava-se a si mesmo como se fosse acompanhando, a distância, a lenta ocupação do seu corpo por uma alma que aos poucos estivesse regressando, igual a fios de água que, avançando sinuosos pelos caminhos das regueiras, penetrassem a terra até às mais fundas raízes, transportando a seiva, depois, pelo interior dos caules e das folhas. E por ver quão trabalhoso era este regresso, olhando a mulher, a seu lado, teve um pensamento que o perturbou, que ela, ali adormecida, era verdadeiramente um corpo sem alma, que a alma não está presente no corpo que dorme, ou então não faz sentido que agradeçamos todos os dias a Deus por todos os dias no-la restituir quando acordamos, e nesta altura uma voz dentro de si perguntou, O que é que em nós sonha o que sonhamos, Porventura os sonhos são as lembranças que a alma tem do corpo, pensou a seguir, e isto era uma resposta. Maria moveu-se, acaso a alma dela estaria ali por perto, já dentro de casa, mas no fim não despertou, apenas andaria em afãs de sonho, e, tendo soltado um suspiro fundo, entrecortado como um soluço, chegou-se para o marido, num movimento sinuoso, porém inconsciente, que jamais ousaria quando acordada. José puxou o lençol grosso e áspero para os ombros e aconchegou melhor o corpo na esteira, sem se afastar. Sentiu que o calor da mulher, carregado de odores, como de uma arca fechada onde tivessem secado ervas, lhe ia penetrando pouco a pouco o tecido da túnica, juntando-se ao calor do seu próprio corpo. Depois, deixando descer devagar as pálpebras, esquecido já de pensamentos, desprendido da alma, abandonou-se ao sono que voltava. Só tornou a acordar quando o galo cantou. A frincha da porta deixava passar uma cor grisalha e imprecisa, de aguada suja. O tempo, usando de paciência, contentara-se com esperar que se cansassem as forças da noite e agora estava a preparar o campo para a manhã chegar ao mundo, como ontem e sempre, em verdade não estamos naqueles dias fabulosos em que o sol, a quem já tanto devíamos, levou a sua benevolência ao ponto de deter, sobre Gabaon, a sua viagem, assim dando a Josué tempo de vencer, com todos os vagares, os cinco reis que lhe cercavam a cidade. José sentou-se na esteira, afastou o lençol, e nesse momento o galo cantou segunda vez, lembrando-lhe que se encontrava em falta de uma bênção, aquela que se deve à parte de méritos que ao galo coube quando da distribuição que deles fez o Criador pelas suas criaturas, Louvado sejas tu, Senhor, nosso Deus, rei do universo, que deste ao galo inteligência para distinguir o dia da noite, isto disse José, e o galo cantou terceira vez. Era costume, ao primeiro sinal destas alvoradas, responderem-se uns aos outros os galos da vizinhança, mas hoje ficaram calados, como se para eles a noite ainda não tivesse terminado ou mal tivesse começado. José, perplexo, olhou o vulto da mulher, estranhando-lhe o sono pesado, ela que o mais ligeiro ruído fazia despertar, como um pássaro. Era como se uma força exterior, descendo, ou pairando, sobre Maria, lhe comprimisse o corpo contra o solo, porém não tanto que a imobilizasse por completo, notava-se mesmo, apesar da penumbra, que a percorriam súbitos estremecimentos, como a água de um tanque tocada pelo vento. Estará mal, pensou, mas eis que um sinal de urgência o distraiu da preocupação incipiente, uma instante necessidade de urinar, também ela muito fora do costume, que estas satisfações, na sua pessoa, habitualmente manifestavam-se mais tarde, e nunca tão vivamente. Levantou-se, cauteloso, para evitar que a mulher desse pelo que ia fazer, pois escrito está que por todos os modos se deve preservar o respeito de um homem, só quando de todo em todo não for possível, e, tendo aberto devagar a porta que rangia, saiu para o pátio. Era a hora em que o crepúsculo matutino cobre de cinzento as cores do mundo. Encaminhou-se para um alpendre baixo, que era a barraca do jumento, e aí se aliviou, escutando, com uma satisfação meio consciente, o ruído forte do jacto de urina sobre a palha que cobria o chão. O burro voltou a cabeça, fazendo brilhar no escuro os olhos salientes, depois sacudiu com força as orelhas peludas e tornou a meter o focinho na manjedoura, a tentear os restos da ração com os beiços grossos e sensíveis. José aproximou-se da talha das abluções, inclinou-a, fez correr a água sobre as mãos, e depois, enquanto as enxugava na própria túnica, louvou a Deus por, em sua sabedoria infinita, ter formado e criado no homem os orifícios e vasos que lhe são necessários à vida, que se um deles se fechasse ou abrisse, não devendo, certa teria o homem a sua morte. Olhou José o céu, e em seu coração pasmou. O sol ainda tarda a despontar, não há, por todos os espaços celestes, o mais lavado indício dos rubros tons do amanhecer, sequer uma pincelada leve de róseo ou de cereja mal madura, nada, a não ser, de horizonte a horizonte, tanto quanto os muros do pátio lhe permitiam ver, em toda a extensão de um imenso tecto de nuvens baixas, que eram como pequenos novelos espalmados, iguais, uma cor única de violeta que, principiando já a tornar-se vibrante e luminosa do lado donde há-de romper o sol, vai progressivamente escurecendo, mais e mais, até se confundir com o que, do lado de além, ainda resta da noite. Em sua vida, José nunca vira um céu como este, embora nas longas conversas dos homens velhos não fossem raras as notícias de fenómenos atmosféricos prodigiosos, todos eles mostras do poder de Deus, arcos-íris que enchiam metade da abóbada celeste, escadas vertiginosas que um dia ligaram o firmamento à terra, chuvas providenciais de manjar-do-céu, mas nunca esta cor misteriosa que tanto podia ser das primordiais como das derradeiras, flutuando e demorando-se sobre o mundo, um tecto de milhares de pequenas nuvens que quase se tocavam umas às outras, espalhadas em todas as direcções como as pedras do deserto. Encheu-se-lhe o coração de temor, imaginou que o mundo ia acabar, e ele posto ali, única testemunha da sentença final de Deus, sim, única, há um silêncio absoluto na terra como no céu, nenhum rumor se ouve nas casas vizinhas, uma voz que fosse, um choro de criança, uma prece ou uma imprecação, um sopro de vento, o balido duma cabra, o ladrar dum cão, Por que não cantam os galos, murmurou, e repetiu a pergunta, ansiosamente, como se de cantarem galos é que pudesse vir a última esperança de salvação. Então, o céu começou a mudar. Pouco a pouco, quase sem perceber-se, o violeta tingia-se e deixava-se penetrar de rosa-pálido na face interior do tecto de nuvens, avermelhando-se depois, até desaparecer, estava ali e deixara de estar, e de súbito o espaço explodiu num vento luminoso, multiplicou-se em lanças de ouro, ferindo em cheio e trespassando as nuvens, que, sem saber-se porquê nem quando, haviam crescido, tornadas formidáveis, barcas gigantescas arvorando incandescentes velas e vogando num céu enfim liberto. Desafogou-se, já sem medos, a alma de José,  s olhos dilataram-se-lhe de assombro e reverência, não era o caso para menos, de mais sendo ele o único espectador, e a sua boca proferiu em voz forte os louvores devidos ao criador das obras da natureza, quando a sempiterna majestade dos céus, tendo-se tornado pura inefabilidade, não pode esperar do homem mais do que as palavras mais simples, Louvado sejas tu, Senhor, por isto, por aquilo, por aqueloutro. Disse-o ele, e nesse instante o rumor da vida, como se o tivesse convocado a sua voz, ou apenas entrando de repente por uma porta que alguém de par em par abrisse sem pensar muito nas consequências, ocupou o espaço que antes pertencera ao silêncio, deixando-lhe apenas pequenos territórios ocasionais, mínimas superfícies, como aqueles breves charcos que as florestas murmurantes rodeiam e ocultam. A manhã subia, expandia-se, e em verdade era uma visão de beleza quase insuportável, duas mãos imensas soltando aos ares e ao voo uma cintilante e imensa ave-do-paraíso, desdobrando em radioso leque a roda de mil olhos da cauda do pavão-real, fazendo cantar perto, simplesmente, um pássaro sem nome. Um sopro de vento ali mesmo nascido bateu na cara de José, agitou-lhe os pêlos da barba, sacudiu-lhe a túnica, e depois girou à volta dele como um espojinho atravessando o deserto, ou isto que assim lhe parecia não era mais do que o aturdimento causado por uma súbita turbulência do sangue, o arrepio sinuoso que lhe estava percorrendo o dorso como um dedo de fogo, sinal de uma outra e mais insistente urgência. Como se se movesse no interior da rodopiante coluna de ar, José entrou em casa, cerrou a porta atrás de si, e ali ficou encostado por um minuto, aguardando que os olhos se habituassem à meia penumbra. Ao lado dele, a candeia brilhava palidamente, quase sem irradiar luz, inútil. Maria, deitada de costas, estava acordada e atenta, olhava fixamente um ponto em frente, e parecia esperar. Sem pronunciar palavra, José aproximou-se e afastou devagar o lençol que a cobria. Ela desviou os olhos, soergueu um pouco a parte inferior da túnica, mas só acabou de puxá-la para cima, à altura do ventre, quando ele já se vinha debruçando e procedia do mesmo modo com a sua própria túnica, e Maria, entretanto, abrira as pernas, ou as tinha aberto durante o sonho e desta maneira as deixara ficar, fosse por inusitada indolência matinal ou pressentimento de mulher casada que conhece os seus deveres. Deus, que está em toda a parte, estava ali, mas, sendo aquilo que é, um puro espírito, não podia ver como a pele de um tocava a pele do outro, como a carne dele penetrou a carne dela, criadas uma e outra para isso mesmo, e, provavelmente, já nem lá se encontraria quando a semente sagrada de José se derramou no sagrado interior de Maria, sagrados ambos por serem a fonte e a taça da vida, em verdade há coisas que o próprio Deus não entende, embora as tivesse criado. Tendo pois saído para o pátio, Deus não pôde ouvir o som agónico, como um estertor, que saiu da boca do varão no instante da crise, e menos ainda o levíssimo gemido que a mulher não foi capaz de reprimir. Apenas um minuto, ou nem tanto, repousou José sobre o corpo de Maria. Enquanto ela puxava para baixo a túnica e se cobria com o lençol, tapando depois a cara com o antebraço, ele, de pé no meio da casa, de mãos levantadas, olhando o tecto, pronunciou aquela sobre todas terrível bênção, aos homens reservada, Louvado sejas tu, Senhor, nosso Deus, rei do universo, por não me teres feito mulher. Ora, a estas alturas, Deus já nem no pátio devia estar, pois não tremeram as paredes da casa, não desabaram, nem a terra se abriu. Apenas, pela primeira vez, se ouviu Maria, e humildemente dizia, como de mulheres se espera que seja sempre a voz, Louvado sejas tu, Senhor, que me fizeste conforme a tua vontade, ora, entre estas palavras e as outras, conhecidas e aclamadas, não há diferença nenhuma, repare-se, Eis a escrava do Senhor, faça-se em mim segundo a tua palavra, está patente que quem disse isto podia, afinal, ter dito aquilo. Depois, a mulher do carpinteiro José levantou-se da esteira, enrolou-a juntamente com a do marido e dobrou o lençol comum.

 

Vídeos

Evangelho Segundo Jesus Cristo, de José Saramago | Ler Antes de Morrer


Canal Ler Antes de Morrer (24/03/20).

 

O Evangelho Segundo Jesus Cristo (José Saramago) | Tatiana Feltrin


Canal Tatiana Feltrin (16/04/17).

 

José Saramago no Jô Soares


Canal do YouTube Rafael Garcia.

 

Roda Viva | José Saramago | 13/10/2003


Programa produzido pela TV Cultura.

 

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Detalhes do e-book

  • Formato: eBook Kindle/Amazon
  • Tamanho do arquivo: 1589 KB
  • Selo: Companhia das Letras (6 de maio de 2005)
  • Editora: Companhia das Letras
  • Número de páginas: 445 páginas
  • Idioma: Português
  • ASIN: B009WW7TV0

Detalhes do livro físico

  • Formato: brochura. Amazon
  • Dimensões: 20,8 x 13,8 x 2,6 cm
  • Peso líquido: 0,567 kg
  • Número de páginas: 448 páginas
  • Selo: Companhia das Letras, Edição: 1 (31 de outubro de 1991)
  • Editora: Companhia das Letras
  • ISBN-10: 8571642095
  • ISBN-13: 978-8571642096
  • Idioma: Português
  • ISBN-13: 9788571642096

 

Outro livro do mesmo autor: Caim: romance.

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“Caim: romance”, de José Saramago https://quarentena.org/indicacoes/caim-romance-jose-saramago-cia-das-letras/ https://quarentena.org/indicacoes/caim-romance-jose-saramago-cia-das-letras/#respond Thu, 21 May 2020 03:18:49 +0000 https://quarentena.org/?post_type=product&p=5887 José Saramago reconta episódios bíblicos do Velho Testamento sob o ponto de vista de Caim, que, depois de assassinar seu irmão, trava um incomum acordo com Deus e parte numa jornada que o levará do jardim do Éden aos mais recônditos confins da criação.]]> Apresentação Caim, José Saramago

Se, em O Evangelho segundo Jesus Cristo, José Saramago nos deu sua visão do Novo Testamento, neste Caim ele se volta aos primeiros livros da Bíblia, do Éden ao dilúvio, imprimindo ao Antigo Testamento a música e o humor refinado que marcam sua obra. Num itinerário heterodoxo, Saramago percorre cidades decadentes e estábulos, palácios de tiranos e campos de batalha, conforme o leitor acompanha uma guerra secular, e de certo modo involuntária, entre criador e criatura. No trajeto, o leitor revisitará episódios bíblicos conhecidos, mas sob uma perspectiva inteiramente diferente.

Para atravessar esse caminho árido, um deus às turras com a própria administração colocará Caim, assassino do irmão Abel e primogênito de Adão e Eva, num altivo jegue, e caberá à dupla encontrar o rumo entre as armadilhas do tempo que insistem em atraí-los. A Caim, que leva a marca do senhor na testa e portanto está protegido das iniquidades do homem, resta aceitar o destino amargo e compactuar com o criador, a quem não reserva o melhor dos julgamentos. Tal como o diabo de O Evangelho, o deus que o leitor encontra aqui não é o habitual dos sermões: ao reinventar o Antigo Testamento, Saramago recria também seus principais protagonistas, dando a eles uma roupagem ao mesmo tempo complexa e irônica, cujo tom de farsa da narrativa só faz por acentuar.

A volta aos temas religiosos serve, também, para destacar o que há de moderno e surpreendente na prosa de Saramago: aqui, a capacidade de tornar nova uma história que conhecemos de cabo a rabo, revelando com mordacidade o que se esconde nas frestas dessas antigas lendas. Munido de ferina veia humorística, Saramago narra uma estranha guerra entre o homem e o senhor. Mais que isso, investiga a fundo as possibilidades narrativas da Bíblia, demonstrando novamente que, ao recontar o mito e confrontar a tradição, o bom autor volta à superfície com uma história tão atual e relevante quanto se pode ser.

A editora disponibiliza um trecho do livro como degustação em pdf, mas você também poderá lê-los abaixo ou na aba “Trecho da Obra”.

 

Trecho da obra: “Caim: romance”, de José Saramago

Quando o senhor, também conhecido como deus, se apercebeu de que a adão e eva, perfeitos em tudo o que apresentavam à vista, não lhes saía uma palavra da boca nem emitiam ao menos um simples som primário que fosse, teve de fi car irritado consigo mesmo, uma vez que não havia mais ninguém no jardim do éden a quem pudesse responsabilizar pela gravíssima falta, quando os outros animais, produtos, todos eles, tal como os dois humanos, do faça-se divino, uns por meio de mugidos e rugidos, outros por roncos, chilreios, assobios e cacarejos, desfrutavam já de voz própria. Num acesso de ira, surpreendente em quem tudo poderia ter solucionado com outro rápido fiat, correu para o casal e, um após outro, sem contemplações, sem meias-medidas, enfiou-lhes a língua pela garganta abaixo. Dos escritos em que, ao longo dos tempos, vieram sendo consignados um pouco ao acaso os acontecimentos destas remotas épocas, quer de possível certifi cação canónica futura ou fruto de imaginações apócrifas e irremediavelmente heréticas, não se aclara a dúvida sobre que língua terá sido aquela, se o músculo flexível e húmido que se mexe e remexe na cavidade bucal e às vezes fora dela, ou a fala, também chamada idioma, de que o senhor lamentavelmente se havia esquecido e que ignoramos qual fosse, uma vez que dela não fi cou o menor vestígio, nem ao menos um coração gravado na casca de uma árvore com uma legenda sentimental, qualquer coisa no género amo-te, eva. Como uma coisa, em princípio, não deveria ir sem a outra, é provável que um outro objectivo do violento empurrão dado pelo senhor às mudas línguas dos seus rebentos fosse pô-las em contacto com os mais profundos interiores do ser corporal, as chamadas incomodidades do ser, para que, no porvir, já com algum conhecimento de causa, pudessem falar da sua escura e labiríntica confusão a cuja janela, a boca, já começavam elas a assomar. Tudo pode ser. Evidentemente, por um escrúpulo de bom artífi ce que só lhe ficava bem, além de compensar com a devida humildade a anterior negligência, o senhor quis comprovar que o seu erro havia sido corrigido, e assim perguntou a adão, Tu, como te chamas, e o homem respondeu, Sou adão, teu primogénito, senhor. Depois, o criador virou-se para a mulher, E tu, como te chamas tu, Sou eva, senhor, a primeira dama, respondeu ela desnecessariamente, uma vez que não havia outra. Deu-se o senhor por satisfeito, despediu-se com um paternal Até logo, e foi à sua vida. Então, pela primeira vez, adão disse para eva, Vamos para a cama.

Set, o filho terceiro da família, só virá ao mundo cento e trinta anos depois, não porque a gravidez materna precisasse de tanto tempo para rematar a fabricação de um novo descendente, mas porque as gónadas do pai e da mãe, os testículos e o útero respectivamente, haviam tardado mais de um século a amadurecer e a desenvolver sufi ciente potência generativa. Há que dizer aos apressados que o fiat foi uma vez e nunca mais, que um homem e uma mulher não são máquinas de encher chouriços, as hormonas são coisa muito complicada, não se produzem assim do pé para a mão, não se encontram nas farmácias nem nos supermercados, há que dar tempo ao tempo. Antes de set tinham vindo ao mundo, com escassa diferença de tempo entre eles, primeiro caim e depois abel. O que não pode ser deixado sem imediata referência é o profundo aborrecimento que foram tantos anos sem vizinhos, sem distracções, sem uma criança gatinhando entre a cozinha e o salão, sem outras visitas que as do senhor, e mesmo essas pouquíssimas e breves, espaçadas por longos períodos de ausência, dez, quinze, vinte, cinquenta anos, imaginamos que pouco haverá faltado para que os solitários ocupantes do paraíso terrestre se vissem a si mesmos como uns pobres órfãos abandonados na fl oresta do universo, ainda que não tivessem sido capazes de explicar o que fosse isso de órfãos e abandonos. É verdade que dia sim, dia não, e este não com altíssima frequência também sim, adão dizia a eva, Vamos para a cama, mas a rotina conjugal, agravada, no caso destes dois, pela nula variedade nas posturas por falta de experiência, já então se demonstrou tão destrutiva como uma invasão de carunchos a roer a trave da casa. Por fora, salvo alguns pozinhos que vão escorrendo aqui e ali de minúsculos orifícios, o atentado mal se percebe, mas lá por dentro a procissão é outra, não tardará muito que venha por aí abaixo o que tão firme havia parecido. Em situações como esta, há quem defenda que o nascimento de um filho pode ter efeitos reanimadores, senão da libido, que é obra de químicas muito mais complexas que aprender a mudar uma fralda, ao menos dos sentimentos, o que, reconhe ça-se, já não é pequeno ganho. Quanto ao senhor e às suas esporádicas visitas, a primeira foi para ver se adão e eva haviam tido problemas com a instalação doméstica, a segunda para saber se tinham beneficiado alguma coisa da experiência da vida campestre e a terceira para avisar que tão cedo não esperava voltar, pois tinha de fazer a ronda pelos outros paraí sos existentes no espaço celeste. De facto, só viria a aparecer muito mais tarde, em data de que não ficou registo, para expulsar o infeliz casal do jardim do éden pelo crime nefando de terem comido do fruto da árvore do conhecimento do bem e do mal. Este episódio, que deu origem à primeira definição de um até aí ignorado pecado original, nunca ficou bem explicado. Em primeiro lugar, mesmo a inteligência mais rudimentar não teria qualquer difi culdade em compreender que estar informado sempre será preferível a desconhecer, mormente em matérias tão delicadas como são estas do bem e do mal, nas quais qualquer um se arrisca, sem dar por isso, a uma condenação eterna num inferno que então ainda estava por inventar. Em segundo lugar, brada aos céus a imprevidência do senhor, que se realmente não queria que lhe comessem do tal fruto, remédio fácil teria, bastaria não ter plantado a árvore, ou ir pô-la noutro sítio, ou rodeá-la por uma cerca de arame farpado. E, em terceiro lugar, não foi por terem desobedecido à ordem de deus que adão e eva descobriram que estavam nus. Nuzinhos, em pelota estreme, já eles andavam quando iam para a cama, e se o senhor nunca havia reparado em tão evidente falta de pudor, a culpa era da sua cegueira de progenitor, a tal, pelos vistos incurável, que nos impede de ver que os nossos fi lhos, no fi m de contas, são tão bons ou tão maus como os demais.

Ponto de ordem à mesa. Antes de prosseguirmos com esta instrutiva e defi nitiva história de caim a que, com nunca visto atrevimento, metemos ombros, talvez seja aconselhável, para que o leitor não se veja confundido por segunda vez com anacrónicos pesos e medidas, introduzir algum critério na cronologia dos acontecimentos. Assim faremos, pois, começando por esclarecer alguma maliciosa dúvida por aí levantada sobre se adão ainda seria competente para fazer um filho aos cento e trinta anos de idade. À primeira vista, não, se nos ativermos apenas aos índices de fertilidade dos tempos modernos, mas esses cento e trinta anos, naquela infância do mundo, pouco mais teriam representado que uma simples e vigorosa adolescência que até o mais precoce dos casanovas desejaria para si. Além disso, convém lembrar que adão viveu até aos novecentos e trinta anos, pouco lhe faltando, portanto, para morrer afogado no dilúvio universal, pois fi nou-se em dias da vida de lamec, o pai de noé, futuro construtor da arca. Logo, teve tempo e vagar para fazer os fi lhos que fez e muitos mais se estivesse para aí virado. Como já dissemos, o segundo, o que viria depois de caim, foi abel, um moço aloirado, de boa figura, que, depois de ter sido objecto das melhores provas de estima do senhor, acabou da pior forma. Ao terceiro, como também ficou dito, chamaram-lhe set, mas esse não entrará na narrativa que vamos compondo passo a passo com melindres de historiador, por isso aqui o deixamos, só um nome e nada mais. Há quem afirme que foi na cabeça dele que nasceu a ideia de criar uma religião, mas desses delicados assuntos já nos ocupámos avonde no passado, com recriminável ligeireza na opinião de alguns peritos, e em termos que muito provavelmente só virão a prejudicar-nos nas alegações do juízo fi nal quando, quer por excesso quer por defeito, todas as almas forem condenadas. Agora somente nos interessa a família de que o papá adão é cabeça, e que má cabeça foi ela, pois não vemos como chamar-lhe doutra maneira, já que bastou trazer-lhe a mulher o proibido fruto do conhecimento do bem e do mal para que o inconsequente primeiro dos patriarcas, depois de se fazer rogado, em verdade mais por comprazer consigo mesmo que por real convicção, se tivesse engasgado com ele, deixando-nos a nós, homens, para sempre marcados por esse irritante pedaço de maçã que não sobe nem desce. Também não falta quem diga que se adão não chegou a engolir de todo o fruto fatal foi porque o senhor lhes apareceu de repente a querer saber o que se tinha passado ali. Já agora, e antes que se nos esqueça de vez ou o prosseguimento do relato venha a tornar inadequada, por tardia, a referência, revelaremos a visita sigilosa, meio clandestina, que o senhor fez ao jardim do éden numa cálida noite de verão. Como de costume, adão e eva dormiam nus, um ao lado do outro, sem tocar-se, imagem edifi cante mas enganadora da mais perfeita das inocências. Não despertaram eles e o senhor não os despertou. O que ali o tinha levado fora o propósito de emendar uma imperfeição de fabrico que, finalmente o percebera, desfeava seriamente as suas criaturas, e que era, imagine-se, a falta de um umbigo. A superfície esbranquiçada da pele dos seus bebés, que o suave sol do paraíso não conseguira tostar, mostrava-se demasiado nua, demasiado oferecida, de certo modo obscena, se a palavra já existisse então. Sem detença, não fossem eles acordar, deus estendeu o braço e, levemente, premiu com a ponta do dedo indicador o ventre de adão, logo fez um rápido movimento de rotação e o umbigo apareceu. A mesma operação, praticada a seguir em eva, deu resultados similares, ainda que com a importante diferença de o umbigo dela ter saído bastante melhorado no que toca a desenho, contornos e delicadeza de pregas. Foi esta a última vez que o senhor olhou uma obra sua e achou que estava bem.

Cinquenta anos e um dia depois desta afortunada intervenção cirúrgica com a qual se iniciaria uma nova era na estética do corpo humano sob o lema consensual de que tudo nele é melhorável, deu-se a catástrofe. Anunciado por um estrondo de trovão, o senhor fez-se presente. Vinha trajado de maneira diferente da habitual, segundo aquilo que seria, talvez, a nova moda imperial do céu, com uma coroa tripla na cabeça e empunhando o ceptro como um cacete. Eu sou o senhor, gritou, eu sou aquele que é. O jardim do éden caiu em silêncio mortal, não se ouvia nem o zumbido de uma vespa, nem o ladrar de um cão, nem um pio de ave, nem um bramido de elefante. Apenas uma bandada de estorninhos que se havia acomodado numa oliveira frondosa que vinha dos tempos da fundação do jardim levantou voo num só impulso, e eram centenas, para não dizer milhares, que quase obscureceram o céu. Quem desobedeceu às minhas ordens, quem foi pelo fruto da minha árvore, perguntou deus, dirigindo directamente a adão um olhar coruscante, palavra desusada mas expressiva como as que mais o forem. Desesperado, o pobre homem tentou, sem resultado, tragar o bocado de maçã que o delatava, mas a voz não lhe saiu, nem para trás nem para diante. Responde, tornou a voz colérica do senhor, ao mesmo tempo que brandia ameaçadoramente o ceptro. Fazendo das tripas coração, consciente do feio que era pôr as culpas em outrem, adão disse, A mulher que tu me deste para viver comigo é que me deu do fruto dessa árvore e eu comi. Revolveu-se o senhor contra a mulher e perguntou, Que fi zeste tu, desgraçada, e ela respondeu, A serpente enganou-me e eu comi, Falsa, mentirosa, não há serpentes no paraíso, Senhor, eu não disse que haja serpentes no paraíso, mas digo sim que tive um sonho em que me apareceu uma serpente, e ela disse-me, Com que então o senhor proibiu-vos de comerem do fruto de todas as árvores do jardim, e eu respondi que não era verdade, que só não podíamos comer do fruto da árvore que está no meio do paraíso e que morreríamos se tocássemos nele, As serpentes não falam, quando muito silvam, disse o senhor, A do meu sonho falou, E que mais disse ela, pode-se saber, perguntou o senhor, esforçando-se por imprimir às palavras um tom escarninho nada de acordo com a dignidade celestial da indumentária, A serpente disse que não teríamos que morrer, Ah, sim, a ironia do senhor era cada vez mais evidente, pelos vistos, essa serpente julga saber mais do que eu, Foi o que eu sonhei, senhor, que não querias que comêssemos do fruto porque abriríamos os olhos e ficaríamos a conhecer o mal e o bem como tu os conheces, senhor, E que fi zeste, mulher perdida, mulher leviana, quando despertaste de tão bonito sonho, Fui à árvore, comi do fruto e levei-o a adão, que comeu também, Ficou-me aqui, disse adão, tocando na garganta, Muito bem, disse o senhor, já que assim o quiseram, assim o vão ter, a partir de agora acabou-se-lhes a boa vida, tu, eva, não só sofrerás todos os incómodos da gravidez, incluindo os enjoos, como parirás com dores, e não obstante sentirás atracção pelo teu homem, e ele mandará em ti, Pobre eva, começas mal, triste destino vai ser o teu, disse eva, Devias tê-lo pensado antes, e quanto à tua pessoa, adão, a terra ficou amaldiçoada por tua causa, e será com grande sacrifício que dela conseguirás tirar alimento durante toda a tua vida, só produzirá espinhos e cardos, e tu terás de comer a erva que cresce no campo, só à custa de muitas bagas de suor conseguirás arranjar o necessário para comer, até que um dia te venhas a transformar de novo em terra, pois dela foste formado, na verdade, mísero adão, tu és pó e ao pó um dia tornarás. Dito isto, o senhor fez aparecer umas quantas peles de animais para tapar a nudez de adão e eva, os quais piscaram os olhos um ao outro em sinal de cumplicidade, pois desde o primeiro dia souberam que estavam nus e disso bem se haviam aproveitado. Disse então o senhor, Tendo conhecido o bem e o mal, o homem tornou-se semelhante a um deus, agora só me faltaria que fosses colher também do fruto da árvore da vida para dele comeres e viveres para sempre, não faltaria mais, dois deuses num universo, por isso te expulso a ti e a tua mulher deste jardim do éden, a cuja porta colocarei de guarda um querubim armado com uma espada de fogo, o qual não deixará entrar ninguém, e agora vão-se embora, saiam daqui, não vos quero ver nunca mais na minha frente. Carregando sobre os ombros as fedorentas peles, bamboleando-se sobre as pernas trôpegas, adão e eva pareciam dois orangotangos que pela primeira vez se tivessem posto de pé. Fora do jardim do éden a terra era árida, inóspita, o senhor não tinha exagerado quando ameaçou adão com espinhos e cardos. Tal como também havia dito, acabara-se a boa vida.

 

Vídeos

Lançamento de Caim, José Saramago


Canal da Fundação José Saramago (24/03/20).

 

José Saramago no Jô Soares


Canal do YouTube Rafael Garcia.

 

Roda Viva | José Saramago | 13/10/2003


Programa produzido pela TV Cultura.

 

Detalhes do e-book

  • Formato: eBook Kindle/Amazon
  • Tamanho do arquivo: 912 KB
  • Selo: Companhia das Letras (7 de outubro de 2009)
  • Editora: Companhia das Letras
  • Número de páginas: 176 páginas
  • Idioma: Português
  • ASIN: B009XE2C00

Detalhes do livro físico

  • Formato: brochura. Amazon
  • Dimensões: 14,00 X 21,00 cm
  • Peso líquido: 0,231 kg
  • Número de páginas:  176 páginas
  • Selo: Companhia das Letras, Edição: 1 (7 de outubro de 2009)
  • Editora: Companhia das Letras
  • ISBN-10: 8535915397
  • ISBN-13: 978-8535915396
  • Idioma: Português
  • ISBN-13: 9788535915396

 

Outro livro do mesmo autor: “O evangelho segundo Jesus Cristo”.

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