Clássico – Quarentena https://quarentena.org Curta sua casa: Indicamos produtos e serviços pagos e gratuitos pra que você aproveite melhor sua casa. :) Fri, 04 Sep 2020 18:57:28 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=6.6.1 https://quarentena.org/wp-content/uploads/2020/04/cropped-logo2_quarentena_512x512px-1-32x32.png Clássico – Quarentena https://quarentena.org 32 32 “Ilíada”, Homero. Edição Penguin, Cia das Letras. https://quarentena.org/indicacoes/iliada-homero-penguin-cia-das-letras/ https://quarentena.org/indicacoes/iliada-homero-penguin-cia-das-letras/#respond Thu, 07 May 2020 05:00:04 +0000 https://quarentena.org/?post_type=product&p=5838 Ilíada é considerado o livro fundador da literatura ocidental que narra a tragédia de Aquiles e a Guerra de Troia em uma nova tradução do helenista português Frederico Lourenço.]]> Apresentação da Ilíada, de Homero

Primeiro livro da literatura ocidental, a Ilíada parece se tratar, pelo título, apenas de um breve incidente ocorrido no cerco dos gregos à cidade troiana de Ílion, a crônica de aproximadamente cinquenta dias de uma guerra que durou dez anos. No entanto, graças à maestria de Homero, seu autor, essa janela no tempo se abre para paisagens vastíssimas, repletas de personagens e eventos que ficariam marcados para sempre no imaginário ocidental.

É nesse épico homérico que surgem figuras como Páris, Helena, Heitor (Hector), Ulisses (Odiseseu), Aquiles e Agamêmnon, e em seus versos somos transportados diretamente para a intimidade dos deuses, com suas relações familiares complexas e às vezes cômicas.

Mas, acima de tudo, a Ilíada é a narrativa da tragédia de Aquiles. Irritado com Agamêmnon, líder da coalizão grega, por seus mandos na guerra, o célebre semideus se retira da batalha, e os troianos passam a impor grandes derrotas aos gregos. Inconformado com a reviravolta, seu escudeiro Pátroclo volta ao combate e acaba morto por Heitor. Cegado pelo ódio, Aquiles retorna à carga sedento por vingança, apesar de todas as previsões sinistras dos oráculos.

Esta edição em versos da Ilíada, com tradução do helenista português Frederico Lourenço, é acompanhada de textos introdutórios, uma lista das principais personagens e alianças bélicas e mapas que ajudam o leitor a compreender a complexa geografia homérica.

A editora disponibiliza os 268 primeiros versos do Canto I como degustação em pdf, mas você também poderá lê-los abaixo ou na aba “Trecho da Obra”.

 

Abertura da Ilíada, de Homero

Os gregos acreditavam que a Ilíada e a Odisseia haviam sido escritas por um único poeta, a quem chamavam de Homero. Nada se sabe a respeito de sua vida. Embora sete cidades gregas reivindiquem a honra de ser sua terra natal, segundo a tradição antiga, ele era oriundo da região da Jônia, no Egeu oriental. Tampouco há registros de sua data de nascimento, ainda que a maioria dos estudiosos modernos situe a criação da Ilíada e da Odisseia em fins do século VIII a.C. ou início do século VII a.C.

Tradução e prefácio:

Frederico Lourenço nasceu em Lisboa, em 1963. Formou-se em línguas e literaturas clássicas na Faculdade de Letras de Lisboa, onde concluiu seu doutorado e hoje leciona. Colaborou com os jornais Público, O Independente, Diário de Notícias e Expresso. Publicou críticas literárias nas revistas Colóquio/ Letras, Journal of Hellenic Studies, Humanitas, Classical Quarterly e Euphrosyne. É autor dos romances Pode um desejo imenso, Amar não acaba, A formosa pintura do mundo e A máquina do arcanjo, e de Ensaio sobre Píndaro, Grécia revisitada e Novos ensaios helênicos e alemães, entre outros. Traduziu também do grego a Odisseia e as tragédias de Eurípides, Hipólito e Íon. Sua tradução da Odisseia recebeu o prêmio D. Diniz da Casa de Mateus e o grande prêmio de tradução do Pen Clube Português e da Associação Portuguesa de Tradutores.

Introdução da Ilíada e apêndices:

Peter Jones é formado em Cambridge, com doutorado em Londres sobre Homero. Foi professor secundário e de classicismo na University of Newcastle upon Tyne. Atualmente é escri￾tor, radialista e jornalista. Nomeado mbe (Ordem do Impérito Britânico) em 1983, é porta-voz nacional do Co-ordinating Committee for Classicis e fundador, com Jeannie Cohen, da instituição beneficente Friends of Classics. Escreveu as séries QED e Eureka para o Daily Telegraph, ambas agora publicadas pela Duckworth como Learn Latin e Learn Ancient Greek. A Druckworth também publicou sua Classics in Translation (outra serie do Telegraph), Ancient and Modern (de sua coluna semanal no Spectator) e An Intelligent Person’s Guide to Classics. É coautor das séries Reading Greek e Reading Latin, para a Cambridge, e autor de livros, artigos e comentários sobre Homero.

Introdução à edição de 1950 da Ilíada:

E. V. Rieu, editor da Penguin Classics de 1944 a 1964, foi professor da St. Paul’s School e do Baliol College, Oxford. Trabalhou na Methuen desde 1923, da qual foi diretor administrativo de 1933 a 1936 e, posteriormente, consultor acadêmico e literário. Foi presidente da Virgil Society em 1951 e vice-presidente da Royal Society of Literature em 1958. Recebeu o título de doutor honorário em letras da Leeds University em 1949 e a Ordem do Império Britânico em 1953. Entre suas publicações, figuram The Flattered Flying Fish and Other Poems e traduções da Odisseia, da Ilíada, das Bucólicas de Virgílio, da Argonáutica de Apolônio de Rodes e dos Quatro Evangelhos pela Penguin Classics. Faleceu em 1972.

 

Índice / Sumário do livro

Introdução — Peter Jones
Introdução à edição de 1950 — E. V. Rieu
Prefácio — Frederico Lourenço
Personagens principais

Gregos
Troianos e aliados de Troia
Deuses

Mapas

1. Uma reconstrução dos campos de batalha imaginários de Homero
2. A Trôade
3. Lugares e contingentes troianos
4. Grécia homérica
5. Contingentes gregos em Troia

ILÍADA

Canto I
Canto II
Canto III
Canto IV
Canto V
Canto VI
Canto VII
Canto VIII
Canto IX
Canto X
Canto XI
Canto XII
Canto XIII
Canto XIV
Canto XV
Canto XVI
Canto XVII
Canto XVIII
Canto XIX
Canto XX
Canto XXI
Canto XXII
Canto XXIII
Canto XXIV

Um breve glossário
Índice remissivo
Referências bibliográficas

 

Trecho da obra Ilíada, de Homero

Canto I

Canta, ó deusa, a cólera de Aquiles, o Pelida
(mortífera!, que tantas dores trouxe aos Aqueus
e tantas almas valentes de heróis lançou no Hades,
ficando seus corpos como presa para cães e aves
5 de rapina, enquanto se cumpria a vontade de Zeus),
desde o momento em que primeiro se desentenderam
o Atrida, soberano dos homens, e o divino Aquiles.

Entre eles qual dos deuses provocou o conflito?
Apolo, filho de Leto e de Zeus. Enfurecera-se o deus
10 contra o rei e por isso espalhara entre o exército
uma doença terrível de que morriam as hostes,
porque o Atrida desconsiderara Crises, seu sacerdote.
Ora este tinha vindo até as naus velozes dos Aqueus
para resgatar a filha, trazendo incontáveis riquezas.
Segurando nas mãos as fitas de Apolo que acerta ao longe
15 e um cetro dourado, suplicou a todos os Aqueus,
mas em especial aos dois Atridas, condutores de homens:

“Ó Atridas e vós, demais Aqueus de belas cnêmides!
Que vos concedam os deuses, que o Olimpo detêm,
saquear a cidade de Príamo e regressar bem a vossas casas!
20 Mas libertai a minha filha amada e recebei o resgate,
por respeito para com o filho de Zeus, Apolo que acerta ao longe.”
Então todos os outros Aqueus aprovaram estas palavras:
que se venerasse o sacerdote e se recebesse o glorioso resgate.
Mas tal não agradou ao coração do Atrida Agamêmnon;
25 e asperamente o mandou embora, com palavras desabridas:

“Que eu te não encontre, ó ancião, junto às côncavas naus,
demorando-te agora ou voltando nos tempos próximos,
pois de nada te servirá o cetro e a fita do deus!
Não libertarei a tua filha. Antes disso a terá atingido a velhice
30 em minha casa, em Argos, longe da sua pátria,
enquanto se afadiga ao tear e dorme na minha cama.
Vai-te agora. Não me encolerizes: partirás mais salvo.”

Assim falou. Amedrontou-se o ancião e obedeceu ao que fora dito.
Caminhou em silêncio ao longo da praia do mar marulhante.
35 E depois de ter se afastado para longe, rezou o ancião
ao soberano Apolo, que Leto de belos cabelos deu à luz:

“Ouve-me, senhor do arco de prata, deus tutelar de Crise
e da sacratíssima Cila, que pela força reges Tênedo,
ó Esminteu! Se alguma vez ao belo templo te pus um teto,
40 ou queimei para ti as gordas coxas de touros
ou de cabras, faz que se cumpra isto que te peço:
que paguem com tuas setas os Dânaos as minhas lágrimas!”

Assim disse, orando; e ouviu-o Febo Apolo.
Desceu do Olimpo, com o coração agitado de ira.
45 Nos ombros trazia o arco e a aljava duplamente coberta;
aos ombros do deus irado as setas chocalhavam
à medida que avançava. E chegou como chega a noite.
Depois sentou-se à distância das naus e disparou uma seta:
terrível foi o som produzido pelo arco de prata.
50 Primeiro atingiu as mulas e os rápidos cães;
mas depois disparou as setas contra os homens.
As piras dos mortos ardiam continuamente.

Durante nove dias contra o exército voaram os disparosdo deus.
Ao décimo dia, Aquiles convocou a hoste para a assembleia:
55 fora isso que lhe colocara no espírito a deusa Hera de alvos braços.
Pois sentia pena dos Dânaos, porque os via morrer.
Assim que se encontraram todos reunidos,
levantou-se para lhes falar Aquiles de pés velozes:
“Atrida, julgo agora que seremos obrigados a regressar
60 e voltar frustrados para casa, isto no caso de fugirmos à morte,
se ao mesmo tempo a guerra e a doença dizimam os Aqueus.
Mas agora interroguemos algum vidente ou sacerdote,
ou um intérprete de sonhos — também os sonhos vêm de Zeus —,
que nos indique por que razão se encolerizou Febo Apolo,
65 se por causa de promessa ou de hecatombe nos censura;
na esperança de que aceite o sacrifício de ovelhas e cabras
imaculadas e que assim afaste de nós a pestilência.”

Tendo assim falado, voltou a sentar-se. Entre eles se levantou
então Calcas, filho de Testor, de longe o melhor dos adivinhos.
70 Todas as coisas ele sabia: as que são, as que serão e as que já foram.
Guiara até Ílion as naus dos Aqueus, graças aos vaticínios
que lhe tinham sido concedidos por Febo Apolo.
Bem-intencionado, assim se dirigiu à assembleia:

“Mandas-me explicar, ó Aquiles dileto de Zeus,
75 a ira do soberano Apolo que acerta ao longe.
Por isso falarei. Mas tu deverás refletir e jurar
que me defenderás com as tuas palavras e as tuas mãos.
Pois sei que encolerizarei certo homem: aquele que rege,
poderoso, os Argivos e a quem obedecem os Aqueus.
80 Maior é o rei que se encoleriza contra um homem inferior.
Pois embora a ira durante um dia consiga reprimir,
daí por diante se mantém ressentido, até cumprir
o que lhe vai no coração. Pensa, pois, se me salvarás.”

Respondendo-lhe assim falou Aquiles de pés velozes:
85 “Toma coragem e profere o oráculo que souberes.
Por Apolo dileto de Zeus a quem tu rezas, ó Calcas,
e por intermédio de quem aos Dânaos dás oráculos,
enquanto eu for vivo e contemplar a luz na terra
ninguém te porá a mão pesada junto às côncavas naus —
90 ninguém de todos os Dânaos, nem que te refiras a Agamêmnon,
que agora entre todos os Aqueus declara ser o mais nobre.”

Tomando então coragem, falou o adivinho irrepreensível:
“Não é porque o deus censura alguma promessa ou hecatombe,
mas por causa do sacerdote, que Agamêmnon desconsiderou.
95 Não libertou a filha nem quis receber o resgate:
por isso nos dá desgraças o deus que acerta ao longe.
E não afastará dos Dânaos a repugnante pestilência,
até que ao querido pai seja restituída a donzela de olhos
brilhantes, gratuitamente e sem resgate, e seja levada até Crise
100 uma sagrada hecatombe. Então convencê-lo-emos a acalmar-se.”

Tendo assim falado, voltou a sentar-se. Entre eles se levantou
o herói, filho de Atreu, Agamêmnon de vasto poder,
irritado: tinha o coração cheio de negra raiva
e os olhos assemelhavam-se a fogo faiscante.
105 Com olhar nefasto, foi a Calcas que primeiro dirigiu a palavra:

“Adivinho de desgraças, em meu benefício nunca tu profetizaste!
Sempre te é caro ao coração profetizar sofrimentos,
mas uma palavra benfazeja nunca foste capaz de proferir
ou fazer cumprir! Agora estás a vaticinar no meio dos Dânaos,
110 dizendo que é por causa disto que o deus lhes traz desgraças,
porque pela donzela Criseida eu não quis aceitar o glorioso
resgate, visto que decidi em vez disso ficar com ela
em minha casa. Prefiro-a a Clitemnestra, minha esposa
legítima, pois em nada lhe é inferior, nem de corpo,
115 nem de estatura, nem na inteligência, nem nos lavores.
Mas apesar disso restituí-la-ei, se for isso a coisa melhor.
Quero que o povo seja salvo, de preferência a que pereça.
Mas preparai para mim outro prêmio, para que não seja só eu
entre os Argivos que fico sem prêmio, pois tal seria indecoroso.
120 Pois vedes todos vós como o meu prêmio vai para outra parte.”

Respondendo-lhe assim falou o divino Aquiles de pés velozes:
“Gloriosíssimo Atrida, mais ganancioso de todos os homens!
Como podem dar-te um prêmio os magnânimos Aqueus?
Nada sabemos de riqueza que jaza num fundo comum,
125 mas os despojos das cidades saqueadas foram distribuídos,
e seria indecoroso tentar reaver tais coisas de junto do povo.
Pela tua parte, deverás cedê-la, como manda o deus. E nós Aqueus
te daremos três e quatro vezes a respectiva recompensa,
quando Zeus nos conceder saquear Troia de belas muralhas.”

130 Respondendo-lhe assim falou o poderoso Agamêmnon:
“Não é deste modo, valente embora sejas, ó divino Aquiles,
que me enganas, pois nem me passarás à frente nem convencerás.
Na verdade o que queres é que, mantendo tu próprio o teu prêmio,
seja eu forçado a passar sem o meu, visto que me mandas restituí-la.
135 Mas se me derem um prêmio os magnânimos Aqueus,
dando algo que me agrade, que seja recompensa condigna —
mas se nada me derem, então eu próprio irei tirar o prêmio
que te pertence, ou a Ájax, ou até a Ulisses: tirá-lo-ei
e levá-lo-ei comigo. Zangar-se-á quem receber a minha visita!
140 Mas nestas coisas pensaremos depois, num momento futuro.
Agora lancemos uma escura nau para o mar divino;
nela reunamos remadores e nela ponhamos a hecatombe;
façamos embarcar a própria Criseida de lindo rosto.
E que da nau tome o comando um chefe aconselhado:
145 talvez Ájax, ou Idomeneu ou o divino Ulisses,
ou então tu próprio, ó Pelida, mais temível dos homens,
para que o sacrifício oferecido apazigue o deus que atua ao longe.”

Fitando-o com sobrolho carregado respondeu Aquiles de pés velozes:
“Ah, como te vestes de vergonha, zeloso do teu proveito!
150 Como obedecerá às tuas palavras algum dos Aqueus,
para seguir caminho ou pelejar pela força contra guerreiros?
Eu não vim para cá lutar por causa dos lanceiros Troianos,
visto que eles em nada me ofenderam:
nunca eles me levaram bois ou cavalos, nem jamais na Ftia
155 de férteis sulcos, alimentadora de homens,
prejudicaram as colheitas, pois muitas coisas há de permeio:
montanhas sombrias e o mar retumbante.
Mas foi a ti, grande desavergonhado!, que seguimos,

para que te regozijasses, para que obtivéssemos honra para Menelau:
foi por ti, ó cara de cão!, que investimos contra os Troianos.
160 Mas nisto não queres tu pensar nem refletir.
E ameaças vir tu próprio tirar-me o prêmio, pelo qual
muito me esforcei, e que me deram os filhos dos Aqueus.
Nunca recebo eu prêmios como os teus, quando saqueiam
os Aqueus uma das cidades bem habitadas dos Troianos.
165 A maior porção da guerra impetuosa têm as minhas mãos
de aguentar; mas quando chega o momento da distribuição,
és tu que ficas com o prêmio melhor; e eu volto para as naus
com coisa pouca, mas que me é querida, depois de ter me cansado
a combater. Mas agora voltarei para a Ftia, visto que é muito melhor
170 regressar para casa com as naus recurvas, pois não estou disposto
a ficar aqui, desonrado, acumulando para ti tesouros.”

A ele deu resposta Agamêmnon, soberano dos homens:
“Foge, pois, se é isso que o coração te impele a fazer!
Não te peço que fiques por minha causa. Junto de mim
175 outros há que me honram, sobretudo Zeus, o conselheiro!
De todos os reis criados por Zeus és para mim o mais odioso.
Sempre te são gratos os conflitos, as guerras e as lutas.
Se és excepcionalmente possante, é porque um deus tal te concedeu.
Vai-te para casa com as tuas naus e com os teus companheiros;
180 rege os Mirmidões. Pois de ti não quero saber,
nem me interessa a tua ira. E deste modo te ameaçarei:
uma vez que Febo Apolo me arrebata Criseida,
mandá-la-ei embora numa das minhas naus e com companheiros
meus, mas irei depois à tua tenda buscar Briseida de lindo rosto,
185 essa que te calhou como prêmio, para que fiques bem a saber
quanto mais forte que tu eu sou! Que doravante a outro repugne
declarar-se meu igual e comparar-se comigo na minha presença!”

Assim falou. Mas uma dor se apoderou do Pelida, cujo coração
no peito hirsuto se dividia no que haveria de pensar:
190 ou desembainhar de junto da coxa a espada afiada
e dispersar a assembleia matando o Atrida;
ou antes acalmar a ira e refrear o coração.
Enquanto isto pensava no espírito e no coração,
tirando a espada da bainha, chegou Atena,
195 vinda do céu. Mandara-a a deusa Hera de alvos braços,
pois a ambos ela estimava e protegia no seu coração.
Postou-se atrás dele e agarrou no loiro cabelo do Pelida,
visível apenas para ele. Nenhum dos outros a viu.
Espantou-se Aquiles ao voltar-se para trás; e logo reconheceu
200 Palas Atena, cujos olhos faiscavam terrivelmente.
E falando dirigiu-lhe palavras aladas:

“Por que aqui regressas, ó filha de Zeus detentor da égide?
Será para veres a insolência do Atrida Agamêmnon?
Mas isto te direi, coisa que penso vir a cumprir-se:
205 é pela sua arrogância que depressa perderá a vida.”

A ele respondeu a deusa, Atena de olhos esverdeados:
“Vim para refrear a tua fúria (no caso de me obedeceres)
do céu: mandou-me a deusa Hera de alvos braços,
pois a ambos ela estima e protege no seu coração.
210 Mas desiste agora do conflito e não tires a espada com a mão.
Com palavras o podes injuriar, como de fato acontecerá.
Pois isto te direi, coisa que haverá de se cumprir:
no futuro três vezes mais gloriosas oferendas te serão
trazidas, por causa da insolência dele. Refreia-te e obedece-nos.”

215 Respondendo-lhe assim falou Aquiles de pés velozes:
“Forçoso é, ó deusa, que se obedeça às palavras de vós ambas,
ainda que o coração esteja enraivecido. Assim será melhor.
Àquele que aos deuses obedece, ouvidos lhe dão eles também.”

Assim falou e reteve a mão pesada no punho de prata,
220 enfiando de novo a grande espada na bainha; não desobedeceu
à palavra de Atena. Por seu lado, partiu ela para o Olimpo,
para o palácio de Zeus detentor da égide, para junto dos deuses.

Mas o Pelida falou de novo com palavras agressivas
ao Atrida; de forma alguma desistiu da sua raiva:
225 “Pesado de vinho! Olhos de cão! Coração de gamo!
Armares-te para a guerra juntamente com o povo,
ou fazeres uma emboscada com os príncipes dos Aqueus:
isso nunca tu ousaste no coração. Tal coisa para ti seria a morte.
Muito mais agradável é ires pelo vasto exército dos Aqueus,
230 arrancando os prêmios a quem te levanta a voz.
Rei voraz com o próprio povo, é sobre nulidades que tu reinas:
se assim não fosse, ó Atrida, esta agora seria a tua última insolência.
Mas isto te direi; e jurarei um grande juramento.
Por este cetro, que nunca mais terá folhas ou rebentos,
235 a partir do momento em que deixou o tronco nas montanhas,
nem nunca mais reverdecerá — pois dele cortou o bronze
as folhas e o casco, e agora os filhos dos Aqueus
que proferem sentenças o seguram, aqueles que praticam
a justiça por mando de Zeus — será este um poderoso juramento:
240 sobrevirá um dia aos filhos dos Aqueus o desejo de terem Aquiles,
a todos eles. E nesse dia não conseguirás tu, apesar do sofrimento,
socorrê-los, quando muitos por Heitor matador de homens
caírem chacinados. E tu morderás dentro de ti o coração
de raiva, porque em nada honraste o melhor dos Aqueus.”

245 Assim falou o Pelida, atirando para o chão o cetro cravejado
de adereços dourados, sentando-se ele próprio em seguida.
Quanto ao Atrida, continuava encolerizado. Então entre eles
se levantou Nestor das doces palavras, o límpido orador de Pilos;
da sua língua fluía um discurso mais doce que o mel.
250 Vira morrer já duas gerações de homens mortais,
dos que com ele nasceram e foram alimentados
na sacra Pilos; e agora reinava sobre a terceira.
Bem-intencionado, assim se dirigiu à assembleia:

“Ah, como é grande a desgraça que à Acaia sobreveio!
255 Na verdade se regozijariam Príamo e os filhos de Príamo,
e todos os outros Troianos se alegrariam no coração,
se soubessem de todo este conflito entre vós ambos,
vós que entre os Dânaos sois excelsos no conselho e na luta.
Ouvi-me! Sois ambos mais novos do que eu.
260 Pois já eu com homens mais valentes que vós
me dei — e nunca esses me desconsideraram.
De resto nunca homens assim eu alguma vez verei:
homens como Pirítoo e Driante, pastor do povo;
Ceneu e Exádio e o divino Polifemo;
265 Teseu e Egeu, semelhante aos imortais.
Os mais fortes foram eles dos homens da terra;
os mais fortes foram eles, e com os mais fortes combateram:
até com centauros das montanhas, que de todo destruíram.

 

Personagens principais da Ilíada, de Homero

Gregos

Agamênon
Ájax
Ájax
Antíloco
Aquiles
Atreu
Automedonte
Calcas
Diomedes
Estênelo
Eurípilo
Fênix
Helena
Héracles
Idomeneu
Lápitas
Macáon
Meleagro
Menécio
Menelau
Menesteu
Meríones
Nestor
Pátroclo
Peleu
Taltíbio
Télamon
Tersites
Teucro
Tideu
Ulisses

Troianos e aliados de Troia

Andrômaca
Antenor
Astíanax
Briseida
Cassandra
Criseida
Deífobo
Dólon
Eécion
Eneias
Glauco
Hécuba
Heitor
Heleno
Ideu
Ilo
Laomedonte
Pândaro
Páris
Polidamante
Príamo

Deuses

Afrodite
Apolo
Ares
Ártemis
Atena
Crono
Desvario
Discórdia
Erínias
Hades
Hebe
Hefesto
Hera
Hermes
Ilitias
Íris
Leto
Musa
Oceano
Posêidon
Tétis
Titãs
Xanto
Zeus

 

Detalhes do produto

  • Formato do Livro: Capa comum
  • Páginas: 720 páginas
  • Título: Ilíada
  • Autor: Homero
  • Selo: Penguin; Edição: 1 (6 de fevereiro de 2013)
  • Editora: Companhia das Letras
  • Tradução: Frederico Lourenço
  • Idioma: Português
  • ISBN-10: 8563560565
  • ISBN-13: 978-8563560568
  • Tags: Iliada, Iliad
  • ISBN-13: 9788563560568
  • Dimensões do produto: 20 x 13,4 x 3,4 cm
  • Peso de envio: 689 g

 

Veja outro título da Penguin: Memórias Póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis

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https://quarentena.org/indicacoes/iliada-homero-penguin-cia-das-letras/feed/ 0
“O velho e o mar”, Ernest Hemingway https://quarentena.org/indicacoes/o-velho-e-o-mar-ernest-hemingway-bertrand/ https://quarentena.org/indicacoes/o-velho-e-o-mar-ernest-hemingway-bertrand/#respond Fri, 01 May 2020 01:26:01 +0000 https://quarentena.org/?post_type=product&p=5818 Hemingway a ser publicada ainda durante a sua vida, sendo uma das suas obras mais famosas. Conta a história de um velho pescador que luta com um gigante Marlim em alto mar por entre a Corrente do Golfo.]]>

Sinopse

Depois de anos na profissão, havia 84 dias que o velho pescador Santiago não apanhava um único peixe. Por isso já diziam se tratar de um salão, ou seja, um azarento da pior espécie. Mas ele possui coragem, acredita em si mesmo, e parte sozinho para alto-mar, munido da certeza de que, desta vez, será bem-sucedido no seu trabalho. Esta é a história de um homem que convive com a solidão, com seus sonhos e pensamentos, sua luta pela sobrevivência e a inabalável confiança na vida. Com um enredo tenso que prende o leitor na ponta da linha, Hemingway escreveu uma das mais belas obras da literatura contemporânea. Uma história dotada de profunda mensagem de fé no homem e em sua capacidade de superar as limitações a que a vida o submete.

 

Sobre o autor

"O velho e o mar", Ernest Hemingway

Ernest Hemingway é um dos pilares da literatura contemporânea mundial. Nascido em 1899, começou a escrever aos 18 anos para um jornal. Quando os Estados Unidos entraram na Primeira Guerra Mundial, alistou-se como voluntário tornando-se motorista de ambulância para o Exército da Itália. Após ser ferido, recebeu uma condecoração do governo italiano. Ao voltar para os Estados Unidos, trabalhou como repórter para jornais americanos e canadenses, e então voltou para a Europa, cobrindo eventos como a Revolução Grega. Durante os anos 1920, tornou-se membro do grupo de expatriados americanos em Paris, o qual ele descreveu em seu primeiro livro, O sol também se levanta (1926). Ernest Hemingway foi agraciado com o Nobel de Literatura em 1954 e faleceu em 1961.

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https://quarentena.org/indicacoes/o-velho-e-o-mar-ernest-hemingway-bertrand/feed/ 0
“Memórias Póstumas de Brás Cubas”, de Machado de Assis https://quarentena.org/indicacoes/memorias-postumas-de-bras-cubas-machado-de-assis-penguin/ https://quarentena.org/indicacoes/memorias-postumas-de-bras-cubas-machado-de-assis-penguin/#respond Tue, 14 Apr 2020 07:33:46 +0000 https://quarentena.org/?post_type=product&p=5235 Memórias póstumas de Brás Cubas é um clássico de Machado de Assis, com o apuro editorial da coleção Penguin-Companhia.]]>

Apresentação de Memórias Póstumas de Brás Cubas escrito por Machado de Assis

Em 1881, Machado de Assis lançou aquele que seria um divisor de águas não só em sua obra, mas na literatura brasileira: Memórias póstumas de Brás Cubas. Ao mesmo tempo em que marca a fase mais madura do autor, o livro é considerado a transição do romantismo para o realismo.

Num primeiro momento, a prosa fragmentária e livre de Memórias póstumas de Brás Cubas, misturando elegância e abuso, refinamento e humor negro, causou estranheza, inclusive entre a crítica. Com o tempo, no entanto, o defunto autor que dedica sua obra ao verme que primeiro roeu as frias carnes de seu cadáver tornou-se um dos personagens mais populares da nossa literatura. Sua história, uma celebração do nada que foi sua vida, foi transformada em filmes, peças e HQs, e teve incontáveis edições no Brasil e no mundo, conquistando admiradores que vão de Susan Sontag a Woody Allen.

Esta edição de Memórias póstumas de Brás Cubas reproduz o prólogo do próprio autor à terceira edição do livro, em que ele responde às dúvidas dos primeiros leitores. Traz ainda prefácio de Hélio de Seixas Guimarães, professor livre-docente na USP e pesquisador do CNPq, e estabelecimento de texto e notas de Marta de Senna, cocriadora e editora da revista eletrônica Machado de Assis em Linha, e Marcelo Diego, pesquisador da obra de Machado na Universidade Princeton.

A editora disponibiliza um trecho como degustação em pdf, mas você também pode lê-lo logo abaixo.

 

Índice / Sumário do livro Memórias póstumas de Brás Cubas

Prefácio — por Hélio de Seixas Guimarães

Nota sobre o texto

MEMÓRIAS PÓSTUMAS DE BRÁS CUBAS

Dedicatória
Prólogo
Ao leitor
i. Óbito do autor
ii. O emplasto
iii. Genealogia
iv. A ideia fixa
v. Em que aparece a orelha de uma senhora
vi. Chimène, qui l’eût dit? Rodrigue, qui l’eût cru?
vii. O delírio
viii. Razão contra sandice
ix. Transição
x. Naquele dia
xi. O menino é pai do homem
xii. Um episódio de 1814
xiii. Um salto
xiv. O primeiro beijo
xv. Marcela
xvi. Uma reflexão imoral
xvii. Do trapézio e outras cousas
xviii. Visão do corredor
xix. A bordo
xx. Bacharelo‑me
xxi. O almocreve
xxii. Volta ao Rio
xxiii. Triste, mas curto
xxiv. Curto, mas alegre
xxv. Na Tijuca
xxvi. O autor hesita
xxvii. Virgília?
xxviii. Contanto que…
xxix. A visita
xxx. A flor da moita
xxxi. A borboleta preta
xxxii. Coxa de nascença
xxxiii. Bem‑aventurados os que não descem
xxxiv. A uma alma sensível
xxxv. O caminho de Damasco
xxxvi. A propósito de botas
xxxvii. Enfim!
xxxviii. A quarta edição
xxxix. O vizinho
xl. Na sege
xli. A alucinação
xlii. Que escapou a Aristóteles
xliii. Marquesa, porque eu serei marquês
xliv. Um Cubas!
xlv. Notas
xlvi. A herança
xlvii. O recluso
xlviii. Um primo de Virgília
xlix. A ponta do nariz
l. Virgília casada
li. É minha!
lii. O embrulho misterioso
liii. …….
liv. A pêndula
lv. O velho diálogo de Adão e Eva
lvi. O momento oportuno
lvii. Destino
lviii. Confidência
lix. Um encontro
lx. O abraço
lxi. Um projeto
lxii. O travesseiro
lxiii. Fujamos!
lxiv. A transação
lxv. Olheiros e escutas
lxvi. As pernas
lxvii. A casinha
lxviii. O vergalho
lxix. Um grão de sandice
lxx. D. Plácida
lxxi. O senão do livro
lxxii. O bibliômano
lxxiii. O luncheon
lxxiv. História de D. Plácida
lxxv. Comigo
lxxvi. O estrume
lxxvii. Entrevista
lxxviii. A presidência
lxxix. Compromisso
lxxx. De secretário
lxxxi. A reconciliação
lxxxii. Questão de botânica
lxxxiii. 13
lxxxiv. O conflito
lxxxv. O cimo da montanha
lxxxvi. O mistério
lxxxvii. Geologia
lxxxviii. O enfermo
lxxxix. In extremis
xc. O velho colóquio de Adão e Caim
xci. Uma carta extraordinária
xcii. Um homem extraordinário
xciii. O jantar
xciv. A causa secreta
xcv. Flores de antanho
xcvi. A carta anônima
xcvii. Entre a boca e a testa
xcviii. Suprimido
xcix. Na plateia
c. O caso provável
ci. A revolução dálmata
cii. De repouso
ciii. Distração
civ. Era ele!
cv. Equivalência das janelas
cvi. Jogo perigoso
cvii. Bilhete
cviii. Que se não entende
cix. O filósofo
cx. 31
cxi. O muro
cxii. A opinião
cxiii. A solda
cxiv. Fim de um diálogo
cxv. O almoço
cxvi. Filosofia das folhas velhas
cxvii. O Humanitismo
cxviii. A terceira força
cxix. Parêntesis
cxx. Compelle intrare
cxxi. Morro abaixo
cxxii. Uma intenção mui fina
cxxiii. O verdadeiro Cotrim
cxxiv. Vá de intermédio
cxxv. Epitáfio
cxxvi. Desconsolação
cxxvii. Formalidade
cxxviii. Na Câmara
cxxix. Sem remorsos
cxxx. Para intercalar no capítulo cxxix
cxxxi. De uma calúnia
cxxxii. Que não é sério
cxxxiii. O princípio de Helvetius
cxxxiv. Cinquenta anos
cxxxv. Oblivion
cxxxvi Inutilidade
cxxxvii. A barretina
cxxxviii. A um crítico
cxxxix. De como não fui ministro d’Estado
cxl. Que explica o anterior
cxli. Os cães
cxlii. O pedido secreto
cxliii. Não vou
cxliv. Utilidade relativa
cxlv. Simples repetição
cxlvi. O programa
cxlvii. O desatino
cxlviii. O problema insolúvel
cxlix. Teoria do benefício
cl. Rotação e translação
cli. Filosofia dos epitáfios
clii. A moeda de Vespasiano
cliii. O alienista
cliv. Os navios do Pireu
clv. Reflexão cordial
clvi. Orgulho da servilidade
clvii. Fase brilhante
clviii. Dous encontros
clix. A semidemência
clx. Das negativas

Cronologia

Outras leituras

 

Trecho da obra Memórias póstumas de Brás Cubas

Ao leitor

Que Stendhal confessasse haver escrito um de seus livros para cem leitores, cousa é que admira e consterna.³ O que não admira, nem provavelmente consternará é se este outro livro não tiver os cem leitores de Stendhal, nem cinquenta, nem vinte, e quando muito, dez. Dez? Talvez cinco. Trata‑se, na verdade, de uma obra difusa, na qual eu, Brás Cubas, se adotei a forma livre de um Sterne, ou de um Xavier de Maistre, não sei se lhe meti algumas rabugens de pessimismo. Pode ser. Obra de finado. Escrevi‑a com a pena da galhofa e a tinta da melancolia, e não é difícil antever o que poderá sair desse conúbio. Acresce que a gente grave achará no livro umas aparências de puro romance, ao passo que a gente frívola não achará nele o seu romance usual; ei‑lo aí fica privado da estima dos graves e do amor dos frívolos, que são as duas colunas máximas da opinião.

Mas eu ainda espero angariar as simpatias da opinião, e o primeiro remédio é fugir a um prólogo explícito e longo. O melhor prólogo é o que contém menos cousas, ou o que as diz de um jeito obscuro e truncado. Conseguintemente, evito contar o processo extraordinário que empreguei na composição destas Memórias, trabalhadas cá no outro mundo. Seria curioso, mas nimiamente extenso, e aliás desnecessário ao entendimento da obra. A obra em si mesma é tudo: se te agradar, fino leitor, pago‑me da tarefa; se te não agradar, pago‑te com um piparote, e adeus.

Brás Cubas

 

Nota ³: No prefácio da segunda edição (1853) de sua obra De l’amour (1822), escrito em 1834, Stendhal (1783‑1842) diz ter escrito o livro para cem leitores.

 

I. Óbito do autor

Algum tempo hesitei se devia abrir estas memórias pelo princípio ou pelo fim, isto é, se poria em primeiro lugar o meu nascimento ou a minha morte. Suposto o uso vulgar seja começar pelo nascimento, duas considerações me levaram a adotar diferente método: a primeira é que eu não sou propriamente um autor defunto, mas um defunto autor, para quem a campa foi outro berço; a segunda é que o escrito ficaria assim mais galante e mais novo. Moisés, que também contou a sua morte, não a pôs no introito, mas no cabo: diferença radical entre este livro e o Pentateuco.

Dito isto, expirei às duas horas da tarde de uma sexta‑‑feira do mês de agosto de 1869, na minha bela chácara de Catumbi. Tinha uns sessenta e quatro anos, rijos e prósperos, era solteiro, possuía cerca de trezentos contos e fui acompanhado ao cemitério por onze amigos. Onze amigos! Verdade é que não houve cartas nem anúncios. Acresce que chovia — peneirava — uma chuvinha miúda, triste e constante, tão constante e tão triste, que levou um
daqueles fiéis da última hora a intercalar esta engenhosa ideia no discurso que proferiu à beira de minha cova:

— Vós, que o conhecestes, meus senhores, vós podeis dizer comigo que a natureza parece estar chorando a perda irreparável de um dos mais belos caracteres que têm honrado a humanidade. Este ar sombrio, estas gotas do céu, aquelas nuvens escuras que cobrem o azul como um crepe funéreo, tudo isso é a dor crua e má que lhe rói à natureza as mais íntimas entranhas; tudo isso é um sublime louvor ao nosso ilustre finado.

Bom e fiel amigo! Não, não me arrependo das vinte apólices que lhe deixei. E foi assim que cheguei à cláusula dos meus dias; foi assim que me encaminhei para o undiscovered country de Hamlet, sem as ânsias nem as dúvidas do moço príncipe, mas pausado e trôpego como quem se retira tarde do espetáculo. Tarde e aborrecido. Viram‑me ir umas nove ou dez pessoas, entre elas três senhoras, minha irmã Sabina, casada com o Cotrim, a filha — um lírio do vale — e… Tenham paciência! Daqui a pouco lhes direi quem era a terceira senhora. Contentem‑se de saber que essa anônima, ainda que não parenta, padeceu mais do que as parentas. É verdade, padeceu mais. Não digo que se carpisse, não digo que se deixasse rolar pelo
chão, convulsa. Nem o meu óbito era cousa altamente dramática… Um solteirão que expira aos sessenta e quatro anos não parece que reúna em si todos os elementos de uma tragédia. E dado que sim, o que menos convinha a essa anônima era aparentá‑lo. De pé, à cabeceira da cama, com os olhos estúpidos, a boca entreaberta, a triste senhora mal podia crer na minha extinção.

— Morto! morto! — dizia consigo.

E a imaginação dela, como as cegonhas que um ilustre viajante viu desferirem o voo desde o Ilisso às ribas africanas, sem embargo das ruínas e dos tempos — a imaginação dessa senhora também voou por sobre os destroços presentes até às ribas de uma África juvenil… Deixá‑la ir; lá iremos mais tarde; lá iremos quando eu me restituir aos primeiros anos. Agora, quero morrer tranquilamente, metodicamente, ouvindo os soluços das damas, as falas baixas dos homens, a chuva que tamborila nas folhas de tinhorão da chácara, e o som estrídulo de uma navalha que um amolador está afiando lá fora, à porta de um correeiro. Juro‑lhes que essa orquestra da morte foi muito menos triste do que podia parecer. De certo ponto em diante chegou a ser deliciosa. A vida estrebuchava‑me no peito, com uns ímpetos de vaga marinha, esvaía‑se‑me a consciência, eu descia à imobilidade física e moral, e o corpo fazia‑se‑me planta, e pedra, e lodo, e cousa nenhuma.

Morri de uma pneumonia; mas se lhe disser que foi menos a pneumonia, do que uma ideia grandiosa e útil, a causa da minha morte, é possível que o leitor me não creia, e todavia é verdade. Vou expor‑lhe sumariamente o caso. Julgue‑o por si mesmo.

 

Nota ⁴: O narrador alude ao ato iii, cena i da peça Hamlet, de William Shakespeare: “The undiscovered country, from whose bourn/ No traveller returns” [O país misterioso de cujas fronteiras nenhum viajante retorna].
Nota ⁵: As cegonhas do Ilisso figuram no livro Itinerário de Paris a Jerusalém (1811), de Chateaubriand. A viagem das cegonhas consta no primeiro capítulo, “Viagem à Grécia”, e também no canto xv de sua obra Os mártires. Na Grécia antiga, o Ilisso era um rio divinizado, na região da Ática, que atravessava a cidade de Atenas e desaguava no golfo Sarônico, ao sul do Pireu.

 

II. O emplasto

Com efeito, um dia de manhã, estando a passear na chácara, pendurou‑se‑me uma ideia no trapézio que eu tinha no cérebro. Uma vez pendurada, entrou a bracejar, a pernear, a fazer as mais arrojadas cabriolas de volatim, que é impossível crer. Eu deixei‑me estar a contemplá‑la. Súbito, deu um grande salto, estendeu os braços e as pernas, até tomar a forma de um X: decifra‑me ou devoro‑te.

Essa ideia era nada menos que a invenção de um medicamento sublime, um emplasto anti‑hipocondríaco, destinado a aliviar a nossa melancólica humanidade. Na petição de privilégio que então redigi, chamei a atenção do governo para esse resultado, verdadeiramente cristão. Todavia, não neguei aos amigos as vantagens pecuniárias que deviam resultar da distribuição de um produto de tamanhos e tão profundos efeitos. Agora, porém, que estou cá do outro lado da vida, posso confessar tudo: o que me influiu principalmente foi o gosto de ver impressas nos jornais, mostradores, folhetos, esquinas, e enfim nas caixinhas do remédio, estas três palavras: Emplasto Brás Cubas. Para que negá‑lo? Eu tinha a paixão do arruído, do cartaz, do foguete de lágrimas. Talvez os modestos me arguam esse defeito; fio, porém, que esse talento me hão de reconhecer os hábeis. Assim, a minha ideia trazia duas faces, como as medalhas, uma virada para o público, outra para mim. De um lado, filantropia e lucro; de outro lado, sede de nomeada. Digamos: — amor da glória.

Um tio meu, cônego de prebenda inteira, costumava dizer que o amor da glória temporal era a perdição das almas, que só devem cobiçar a glória eterna. Ao que retorquia outro tio, oficial de um dos antigos terços de infantaria, que o amor da glória era a cousa mais verdadeiramente humana que há no homem, e, conseguintemente, a sua mais genuína feição.

Decida o leitor entre o militar e o cônego; eu volto ao emplasto.

 

Resenha/Comentário sobre Memórias póstumas de Brás Cubas


Por Tatiana Feltrin. (24/05/15)

 

Drummond rejeitava Machado de Assis. Ele não era o único.


O pesquisador Hélio de Seixas Guimarães, da FFLCH-USP, lê trechos de obras de Drummond, Graciliano Ramos e Guimarães Rosa e comenta como os autores receberam a obra de Machado de Assis, romancista central na tradição literária brasileira. Canal Pesquisa Fapesp (25/11/19).

 

AUDIOLIVRO: “Memórias Póstumas de Brás Cubas”, de Machado de Assis


Canal ibamendes.

 

Além de Memórias póstumas de Brás Cubas, a Companhia das Letras e a Penguin editaram também outro clássico da literatura ocidental: Ilíada, de Homero.

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