Romance – Quarentena https://quarentena.org Curta sua casa: Indicamos produtos e serviços pagos e gratuitos pra que você aproveite melhor sua casa. :) Tue, 12 Mar 2024 16:42:55 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=6.5.3 https://quarentena.org/wp-content/uploads/2020/04/cropped-logo2_quarentena_512x512px-1-32x32.png Romance – Quarentena https://quarentena.org 32 32 “O evangelho segundo Jesus Cristo”, de José Saramago https://quarentena.org/indicacoes/o-evangelho-segundo-jesus-cristo-jose-saramago/ https://quarentena.org/indicacoes/o-evangelho-segundo-jesus-cristo-jose-saramago/#respond Thu, 21 May 2020 21:14:56 +0000 https://quarentena.org/?post_type=product&p=5891 Evangelho segundo Jesus Cristo é uma obra de ficção, um romance magistral, escrita pelo vencedor do prêmio Nobel de Literatura de 1998, José Saramago: "O filho de José e de Maria nasceu como todos os filhos dos homens, sujo de sangue de sua mãe, viscoso das suas mucosidades e sofrendo em silêncio. Chorou porque o fizeram chorar, e chorará por esse mesmo e único motivo."]]> Apresentação de O Evangelho segundo Jesus Cristo

“O filho de José e de Maria nasceu como todos os filhos dos homens, sujo de sangue de sua mãe, viscoso das suas mucosidades e sofrendo em silêncio. Chorou porque o fizeram chorar, e chorará por esse mesmo e único motivo.”

Todos conhecem a história do filho de José e Maria, mas nesta narrativa ela ganha tanta beleza e tanta pungência que é como se estivesse sendo contada pela primeira vez. Nas palavras de José Paulo Paes: “Interessado menos na onipotência do divino que na frágil mas tenaz resistência do humano, a arte magistral de Saramago excele no dar corpo às preliminares e à culminância do drama da Paixão”.

 

Trecho da obra O Evangelho segundo Jesus Cristo

Já que muitos empreenderam compor
uma narração dos factos que entre nós
se consumaram, como no-los transmitiram
os que desde o princípio foram testemunhas
oculares e se tornaram servidores
da Palavra, resolvi eu também,
depois de tudo ter investigado cuidadosamente
desde a origem, expor-tos por
escrito e pela sua ordem, ilustre Teófilo,
a fim de que reconheças a solidez da
doutrina em que foste instruído.
LUCAS, 1, 1-4

Quod scripsi, scripsi.
PILATOS

 

O sol mostra-se num dos cantos superiores do rectângulo, o que se encontra à esquerda de quem olha, representando, o astro-rei, uma cabeça de homem donde jorram raios de aguda luz e sinuosas labaredas, tal uma rosa-dos-ventos indecisa sobre a direcção dos lugares para onde quer apontar, e essa cabeça tem um rosto que chora, crispado de uma dor que não remite, lançando pela boca aberta um grito que não poderemos ouvir, pois nenhuma destas coisas é real, o que temos diante de nós é papel e tinta, mais nada. Por baixo do sol vemos um homem nu atado a um tronco de árvore, cingidos os rins por um pano que lhe cobre as partes a que chamamos pudendas ou vergonhosas, e os pés tem-nos assentes no que resta de um ramo lateral cortado, porém, por maior firmeza, para que não resvalem desse suporte natural, dois pregos os mantêm, cravados fundo. Pela expressão da cara, que é de inspirado sofrimento, e pela direcção do olhar, erguido para o alto, deve de ser o Bom Ladrão. O cabelo, todo aos caracóis, é outro indício que não engana, sabendo-se que anjos e arcanjos assim o usam, e o criminoso arrependido, pelas mostras, já está no caminho de ascender ao mundo das celestiais criaturas. Não será possível averiguar se este tronco ainda é uma árvore, apenas adaptada, por mutilação selectiva, a instrumento de suplício, mas continuando a alimentar-se da terra pelas raízes, porquanto toda a parte inferior dela está tapada por um homem de barba comprida, vestido de ricas, folgadas e abundantes roupas, que, tendo embora levantada a cabeça, não é para o céu que olha. Esta postura solene, este triste semblante, só podem ser de José de Arimateia, que Simão de Cirene, sem dúvida outra hipótese possível, após o trabalho a que o tinham forçado, ajudando o condenado no transporte do patíbulo, conforme os protocolos destas execuções, fora à sua vida, muito mais preocupado com as consequências do atraso para um negócio que trazia aprazado do que com as mortais aflições do infeliz que iam crucificar. Ora, este José de Arimateia é aquele bondoso e abastado homem que ofereceu os préstimos de um túmulo seu para nele ser depositado o corpo principal, mas a generosidade não lhe servirá de muito na hora das santificações, sequer das beatificações, pois não tem, a envolver-lhe a cabeça, mais do que o turbante com que sai à rua todos os dias, ao contrário desta mulher que aqui vemos em plano próximo, de cabelos -soltos sobre o dorso curvo e dobrado, mas toucada com a glória suprema duma auréola, no seu caso recortada como um bordado doméstico. De certeza que a mulher ajoelhada se chama Maria, pois de antemão sabíamos que todas quantas aqui vieram juntar-se usam esse nome, apenas uma delas, por ser ademais Madalena, se distingue onomasticamente das outras, ora, qualquer observador, se conhecedor bastante dos factos elementares da vida, jurará, à primeira vista, que a mencionada Madalena é esta precisamente, porquanto só uma pessoa como ela, de dissoluto passado, teria ousado apresentar-se, na hora trágica, com um decote tão aberto, e um corpete de tal maneira justo que lhe faz subir e altear a redondez dos seios, razão por que, inevitavelmente, está atraindo e retendo a mirada sôfrega dos homens que passam, com grave dano das almas, assim arrastadas à perdição pelo infame corpo. É, porém, de compungida tristeza a expressão do seu rosto, e o abandono do corpo não exprime senão a dor de uma alma, é certo que escondida por carnes tentadoras, mas que é nosso dever ter em conta, falamos da alma, claro está, esta mulher poderia até estar inteiramente nua, se em tal preparo tivessem escolhido representá-la, que ainda assim haveríamos de demonstrar-lhe respeito e homenagem. Maria Madalena, se ela é, ampara, e parece que vai beijar, num gesto de compaixão intraduzível por palavras, a mão doutra mulher, esta sim, caída por terra, como desamparada de forças ou ferida de morte. O seu nome também é Maria, segunda na ordem de apresentação, mas, sem dúvida, primeiríssima na importância, se algo significa o lugar central que ocupa na região inferior da composição. Tirando o rosto lacrimoso e as mãos desfalecidas, nada se lhe alcança a ver do corpo, coberto pelas pregas múltiplas do manto e da túnica, cingida na cintura por um cordão cuja aspereza se adivinha. É mais idosa do que a outra Maria, e esta é uma boa razão, provavelmente, mas não a única, para que a sua auréola tenha um desenho mais complexo, assim, pelo menos, se acharia autorizado a pensar quem, não dispondo de informações precisas acerca das precedências, patentes e hierarquias em vigor neste mundo, estivesse obrigado a formular uma opinião. Porém, tendo em conta o grau de divulgação, operada por artes maiores e menores, destas iconografias, só um habitante doutro planeta, supondo que nele não se houvesse repetido alguma vez, ou mesmo estreado, este drama, só esse em verdade inimaginável ser ignoraria que a afligida mulher é a viúva de um carpinteiro chamado José e mãe de numerosos filhos e filhas, embora só um deles, por imperativos do destino ou de quem o governa, tenha vindo a prosperar, em vida mediocremente, mas maiormente depois da morte. Reclinada sobre o seu lado esquerdo, Maria, mãe de Jesus, esse mesmo a quem acabamos de aludir, apoia o antebraço na coxa de uma outra mulher, também ajoelhada, também Maria de seu nome, e afinal, apesar de não lhe podermos ver nem fantasiar o decote, talvez verdadeira Madalena. Tal como a primeira desta trindade de mulheres, mostra os longos cabelos soltos, caídos pelas costas, mas estes têm todo o ar de serem louros, se não foi pura casualidade a diferença do traço, mais leve neste caso e deixando espaços vazios no sentido das madeixas, o que, obviamente, serviu ao gravador para aclarar o tom geral da cabeleira representada. Com tais razões não pretendemos afirmar que Maria Madalena tivesse sido, de facto, loura, apenas nos estamos conformando com a corrente de opinião maioritária que insiste em ver nas louras, tanto as de natureza como as de tinta, os mais eficazes instrumentos de pecado e perdição. Tendo sido Maria Madalena, como é geralmente sabido, tão pecadora mulher, perdida como as que mais o foram, teria também de ser loura para não desmentir as convicções, em bem e em mal adquiridas, de metade do género humano. Não é, porém, por parecer esta terceira Maria, em comparação com a outra, mais clara na tez e no tom do cabelo, que insinuamos e propomos, contra as arrasadoras evidências de um decote profundo e de um peito que se exibe, ser ela a Madalena. Outra prova, esta fortíssima, robustece e afirma a identificação, e vem a ser que a dita mulher, ainda que um pouco amparando, com distraída mão, a extenuada mãe de Jesus, levanta, sim, para o alto o olhar, e este olhar, que é de autêntico e arrebatado amor, ascende com tal força que parece levar consigo o corpo todo, todo o seu ser carnal, como uma irradiante auréola capaz de fazer empalidecer o halo que já lhe está rodeando a cabeça e reduzindo pensamentos e emoções. Apenas uma mulher que tivesse amado tanto quanto imaginamos que Maria Madalena amou poderia olhar desta maneira, com o que, derradeiramente, fica feita a prova de ser ela esta, só esta, e nenhuma outra, excluída portanto a que ao lado se encontra, Maria quarta, de pé, meio levantadas as mãos, em piedosa demonstração, mas de olhar vago, fazendo companhia, neste lado da gravura, a um homem novo, pouco mais que adolescente, que de modo amaneirado a perna esquerda flecte, assim, pelo joelho, enquanto a mão direita, aberta, exibe, numa atitude afectada e teatral, o grupo de mulheres a quem coube representar, no chão, a acção dramática. Este personagem, tão novinho, com o seu cabelo aos cachos e o lábio trémulo, é João. Tal como José de Arimateia, também esconde com o corpo o pé desta outra árvore que, lá em cima, no lugar dos ninhos, levanta ao ar um segundo homem nu, atado e pregado como o primeiro, mas este é de cabelos lisos, deixa pender a cabeça para olhar, se ainda pode, o chão, e a sua cara, magra e esquálida, dá pena, ao contrário do ladrão do outro lado, que mesmo no transe final, de sofrimento agónico, ainda tem valor para mostrar-nos um rosto que facilmente imaginamos rubicundo, corria-lhe bem a vida quando roubava, não obstante a falta que fazem as cores aqui. Magro, de cabelos lisos, de cabeça caída para a terra que o há-de comer, duas vezes condenado, à morte e ao inferno, este mísero despojo só pode ser o Mau Ladrão, rectíssimo homem afinal, a quem sobrou consciência para não fingir acreditar, a coberto de leis divinas e humanas, que um minuto de arrependimento basta para resgatar uma vida inteira de maldade ou uma simples hora de fraqueza. Por cima dele, também chorando e clamando como o sol que em frente está, vemos a lua em figura de mulher, com uma incongruente argola a enfeitar-lhe a orelha, licença que nenhum artista ou poeta se terá permitido antes e é duvidoso que se tenha permitido depois, apesar do exemplo. Este sol e esta lua iluminam por igual a terra, mas a luz ambiente é circular, sem sombras, por isso pode ser tão nitidamente visto o que está no horizonte, ao fundo, torres e muralhas, uma ponte levadiça sobre um fosso onde brilha água, umas empenas góticas, e lá por trás, no testo duma última colina, as asas paradas de um moinho. Cá mais perto, pela ilusão da perspectiva, quatro cavaleiros de elmo, lança e armadura fazem voltear as montadas em alardes de alta escola, mas os seus gestos sugerem que chegaram ao fim da exibição, estão saudando, por assim dizer, um público invisível. A mesma impressão de final de festa é dada por aquele soldado de infantaria que já dá um passo para retirar-se, levando, suspenso da mão direita, o que, a esta distância, parece um pano, mas que também pode ser manto ou túnica, enquanto dois outros militares dão sinais de imtação e despeito, se é possível, de tão longe, decifrar nos minúsculos rostos um sentimento, como de quem jogou e perdeu. Por cima destas vulgaridades de milícia e de cidade muralhada pairam quatro anjos, sendo dois dos de corpo inteiro, que choram, e protestam, e se lastimam, não assim um deles, de perfil grave, absorto no trabalho de recolher numa taça, até à última gota, o jorro de sangue que sai do lado direito do Crucificado. Neste lugar, a que chamam Gólgota, muitos são os que tiveram o mesmo destino fatal e outros muitos o virão a ter, mas este homem, nu, cravado de pés e mãos numa cruz, filho de José e de Maria, Jesus de seu nome, é o único a quem o futuro concederá a honra da maiúscula inicial, os mais nunca passarão de crucificados menores. É ele, finalmente, este para quem apenas olham José de Arimateia e Maria Madalena, este que faz chorar o sol e a lua, este que ainda agora louvou o Bom Ladrão e desprezou o Mau, por não compreender que não há nenhuma diferença entre um e outro, ou, se diferença há, não é essa, pois o Bem e o Mal não existem em si mesmos, cada um deles é somente a ausência do outro. Tem por cima da cabeça, resplandecente de mil raios, mais do que, juntos, o sol e a lua, um cartaz escrito em romanas letras que o proclamam Rei dos Judeus, e, cingindo-a, uma dolorosa coroa de espinhos, como a levam, e não sabem, mesmo quando não sangram para fora do corpo, aqueles homens a quem não se permite que sejam reis em suas próprias pessoas. Não goza Jesus de um descanso para os pés, como o têm os ladrões, todo o peso do seu corpo estaria suspenso das mãos pregadas no madeiro se não fosse restar-lhe ainda alguma vida, a bastante para o manter erecto sobre os joelhos retesados, mas que cedo se lhe acabará, a vida, continuando o sangue a saltar-lhe da ferida do peito, como já foi dito. Entre as duas cunhas que firmam a cruz a prumo, como ela introduzidas numa escura fenda do chão, ferida da terra não mais incurável que qualquer sepultura de homem, está um crânio, e também uma tíbia e uma omoplata, mas o crânio é que nos importa, porque é isso o que Gólgota significa, crânio, não parece ser uma palavra o mesmo que a outra, mas alguma diferença lhes notaríamos se em vez de escrever crânio e Gólgota escrevêssemos gólgota e Crânio. Não se sabe quem aqui pôs estes restos e com que fim o teria feito, se é apenas um irónico e macabro aviso aos infelizes supliciados sobre o seu estado futuro, antes de se tornarem em terra, pó e coisa nenhuma. Mas também há quem afirme que este é o próprio crânio de Adão, subido do negrume profundo das camadas geológicas arcaicas, e agora, porque a elas não pode voltar, condenado eternamente a ter diante dos olhos a terra, seu único paraíso possível e para sempre perdido. Lá atrás, no mesmo campo onde os cavaleiros executam um último volteio, um homem afasta-se, virando ainda a cabeça para este lado. Leva na mão esquerda um balde e uma cana na mão direita. Na extremidade da cana deve haver uma esponja, é difícil ver daqui, e o balde, quase apostaríamos, contém água com vinagre. Este homem, um dia, e depois para sempre, será vítima de uma calúnia, a de, por malícia ou escárnio, ter dado vinagre a Jesus ao pedir ele água, quando o certo foi ter-lhe dado da mistura que traz, vinagre e água, refresco dos mais soberanos para matar a sede, como ao tempo se sabia e praticava. Vai-se embora, não fica até ao fim, fez o que podia para aliviar as securas mortais dos três condenados, e não fez diferença entre Jesus e os Ladrões, pela simples razão de que tudo isto são coisas da terra, que vão ficar na terra, e delas se faz a única história possível.

A noite ainda tem muito para durar. A candeia de azeite, dependurada de um prego ao lado da porta, está acesa, mas a chama, como uma pequena amêndoa luminosa pairando, mal consegue, trémula, instável, suster a massa escura que a rodeia e enche de cima a baixo a casa, até aos últimos recantos, lá onde as trevas, de tão espessas, parecem ter-se tornado sólidas. José acordou em sobressalto, como se alguém, bruscamente, o tivesse sacudido pelo ombro, mas teria sido ilusão de um sonho logo desvanecido, que nesta casa só ele vive, e a mulher, que não se mexeu, e dorme. Não é seu costume despertar assim a meio da noite, em geral não acorda antes de a larga frincha da porta começar a emergir do escuro, cinzenta e fria. Inúmeras vezes pensara que deveria tapála, nada mais fácil para um carpinteiro, ajustar e pregar uma simples régua de madeira que sobrasse duma obra, porém, a tal ponto se tinha habituado a encontrar na sua frente, mal abria os olhos, aquela vara vertical de luz, anunciadora do dia, que acabara por imaginar, sem ligar ao absurdo da ideia, que, faltando ela, poderia não ser capaz de sair das trevas do sono, as do seu corpo e as do mundo. A frincha da porta fazia parte da casa, como as paredes ou o tecto, como o forno ou o chão de terra apisoada. Em voz baixa, para não acordar a mulher, que continuava a dormir, pronunciou a primeira bênção do dia, aquela que sempre deve ser dita quando se regressa do misterioso país do sono, Graças te dou, Senhor, nosso Deus, rei do universo, que pelo poder da tua misericórdia, assim me restituis, viva e constante, a minha alma. Talvez por não se encontrar igualmente desperto em cada um dos seus cinco sentidos, se é que, então, nesta época de que vimos falando, não estavam as pessoas ainda a aprender alguns deles ou, pelo contrário, a perder outros que hoje nos seriam úteis, José olhava-se a si mesmo como se fosse acompanhando, a distância, a lenta ocupação do seu corpo por uma alma que aos poucos estivesse regressando, igual a fios de água que, avançando sinuosos pelos caminhos das regueiras, penetrassem a terra até às mais fundas raízes, transportando a seiva, depois, pelo interior dos caules e das folhas. E por ver quão trabalhoso era este regresso, olhando a mulher, a seu lado, teve um pensamento que o perturbou, que ela, ali adormecida, era verdadeiramente um corpo sem alma, que a alma não está presente no corpo que dorme, ou então não faz sentido que agradeçamos todos os dias a Deus por todos os dias no-la restituir quando acordamos, e nesta altura uma voz dentro de si perguntou, O que é que em nós sonha o que sonhamos, Porventura os sonhos são as lembranças que a alma tem do corpo, pensou a seguir, e isto era uma resposta. Maria moveu-se, acaso a alma dela estaria ali por perto, já dentro de casa, mas no fim não despertou, apenas andaria em afãs de sonho, e, tendo soltado um suspiro fundo, entrecortado como um soluço, chegou-se para o marido, num movimento sinuoso, porém inconsciente, que jamais ousaria quando acordada. José puxou o lençol grosso e áspero para os ombros e aconchegou melhor o corpo na esteira, sem se afastar. Sentiu que o calor da mulher, carregado de odores, como de uma arca fechada onde tivessem secado ervas, lhe ia penetrando pouco a pouco o tecido da túnica, juntando-se ao calor do seu próprio corpo. Depois, deixando descer devagar as pálpebras, esquecido já de pensamentos, desprendido da alma, abandonou-se ao sono que voltava. Só tornou a acordar quando o galo cantou. A frincha da porta deixava passar uma cor grisalha e imprecisa, de aguada suja. O tempo, usando de paciência, contentara-se com esperar que se cansassem as forças da noite e agora estava a preparar o campo para a manhã chegar ao mundo, como ontem e sempre, em verdade não estamos naqueles dias fabulosos em que o sol, a quem já tanto devíamos, levou a sua benevolência ao ponto de deter, sobre Gabaon, a sua viagem, assim dando a Josué tempo de vencer, com todos os vagares, os cinco reis que lhe cercavam a cidade. José sentou-se na esteira, afastou o lençol, e nesse momento o galo cantou segunda vez, lembrando-lhe que se encontrava em falta de uma bênção, aquela que se deve à parte de méritos que ao galo coube quando da distribuição que deles fez o Criador pelas suas criaturas, Louvado sejas tu, Senhor, nosso Deus, rei do universo, que deste ao galo inteligência para distinguir o dia da noite, isto disse José, e o galo cantou terceira vez. Era costume, ao primeiro sinal destas alvoradas, responderem-se uns aos outros os galos da vizinhança, mas hoje ficaram calados, como se para eles a noite ainda não tivesse terminado ou mal tivesse começado. José, perplexo, olhou o vulto da mulher, estranhando-lhe o sono pesado, ela que o mais ligeiro ruído fazia despertar, como um pássaro. Era como se uma força exterior, descendo, ou pairando, sobre Maria, lhe comprimisse o corpo contra o solo, porém não tanto que a imobilizasse por completo, notava-se mesmo, apesar da penumbra, que a percorriam súbitos estremecimentos, como a água de um tanque tocada pelo vento. Estará mal, pensou, mas eis que um sinal de urgência o distraiu da preocupação incipiente, uma instante necessidade de urinar, também ela muito fora do costume, que estas satisfações, na sua pessoa, habitualmente manifestavam-se mais tarde, e nunca tão vivamente. Levantou-se, cauteloso, para evitar que a mulher desse pelo que ia fazer, pois escrito está que por todos os modos se deve preservar o respeito de um homem, só quando de todo em todo não for possível, e, tendo aberto devagar a porta que rangia, saiu para o pátio. Era a hora em que o crepúsculo matutino cobre de cinzento as cores do mundo. Encaminhou-se para um alpendre baixo, que era a barraca do jumento, e aí se aliviou, escutando, com uma satisfação meio consciente, o ruído forte do jacto de urina sobre a palha que cobria o chão. O burro voltou a cabeça, fazendo brilhar no escuro os olhos salientes, depois sacudiu com força as orelhas peludas e tornou a meter o focinho na manjedoura, a tentear os restos da ração com os beiços grossos e sensíveis. José aproximou-se da talha das abluções, inclinou-a, fez correr a água sobre as mãos, e depois, enquanto as enxugava na própria túnica, louvou a Deus por, em sua sabedoria infinita, ter formado e criado no homem os orifícios e vasos que lhe são necessários à vida, que se um deles se fechasse ou abrisse, não devendo, certa teria o homem a sua morte. Olhou José o céu, e em seu coração pasmou. O sol ainda tarda a despontar, não há, por todos os espaços celestes, o mais lavado indício dos rubros tons do amanhecer, sequer uma pincelada leve de róseo ou de cereja mal madura, nada, a não ser, de horizonte a horizonte, tanto quanto os muros do pátio lhe permitiam ver, em toda a extensão de um imenso tecto de nuvens baixas, que eram como pequenos novelos espalmados, iguais, uma cor única de violeta que, principiando já a tornar-se vibrante e luminosa do lado donde há-de romper o sol, vai progressivamente escurecendo, mais e mais, até se confundir com o que, do lado de além, ainda resta da noite. Em sua vida, José nunca vira um céu como este, embora nas longas conversas dos homens velhos não fossem raras as notícias de fenómenos atmosféricos prodigiosos, todos eles mostras do poder de Deus, arcos-íris que enchiam metade da abóbada celeste, escadas vertiginosas que um dia ligaram o firmamento à terra, chuvas providenciais de manjar-do-céu, mas nunca esta cor misteriosa que tanto podia ser das primordiais como das derradeiras, flutuando e demorando-se sobre o mundo, um tecto de milhares de pequenas nuvens que quase se tocavam umas às outras, espalhadas em todas as direcções como as pedras do deserto. Encheu-se-lhe o coração de temor, imaginou que o mundo ia acabar, e ele posto ali, única testemunha da sentença final de Deus, sim, única, há um silêncio absoluto na terra como no céu, nenhum rumor se ouve nas casas vizinhas, uma voz que fosse, um choro de criança, uma prece ou uma imprecação, um sopro de vento, o balido duma cabra, o ladrar dum cão, Por que não cantam os galos, murmurou, e repetiu a pergunta, ansiosamente, como se de cantarem galos é que pudesse vir a última esperança de salvação. Então, o céu começou a mudar. Pouco a pouco, quase sem perceber-se, o violeta tingia-se e deixava-se penetrar de rosa-pálido na face interior do tecto de nuvens, avermelhando-se depois, até desaparecer, estava ali e deixara de estar, e de súbito o espaço explodiu num vento luminoso, multiplicou-se em lanças de ouro, ferindo em cheio e trespassando as nuvens, que, sem saber-se porquê nem quando, haviam crescido, tornadas formidáveis, barcas gigantescas arvorando incandescentes velas e vogando num céu enfim liberto. Desafogou-se, já sem medos, a alma de José,  s olhos dilataram-se-lhe de assombro e reverência, não era o caso para menos, de mais sendo ele o único espectador, e a sua boca proferiu em voz forte os louvores devidos ao criador das obras da natureza, quando a sempiterna majestade dos céus, tendo-se tornado pura inefabilidade, não pode esperar do homem mais do que as palavras mais simples, Louvado sejas tu, Senhor, por isto, por aquilo, por aqueloutro. Disse-o ele, e nesse instante o rumor da vida, como se o tivesse convocado a sua voz, ou apenas entrando de repente por uma porta que alguém de par em par abrisse sem pensar muito nas consequências, ocupou o espaço que antes pertencera ao silêncio, deixando-lhe apenas pequenos territórios ocasionais, mínimas superfícies, como aqueles breves charcos que as florestas murmurantes rodeiam e ocultam. A manhã subia, expandia-se, e em verdade era uma visão de beleza quase insuportável, duas mãos imensas soltando aos ares e ao voo uma cintilante e imensa ave-do-paraíso, desdobrando em radioso leque a roda de mil olhos da cauda do pavão-real, fazendo cantar perto, simplesmente, um pássaro sem nome. Um sopro de vento ali mesmo nascido bateu na cara de José, agitou-lhe os pêlos da barba, sacudiu-lhe a túnica, e depois girou à volta dele como um espojinho atravessando o deserto, ou isto que assim lhe parecia não era mais do que o aturdimento causado por uma súbita turbulência do sangue, o arrepio sinuoso que lhe estava percorrendo o dorso como um dedo de fogo, sinal de uma outra e mais insistente urgência. Como se se movesse no interior da rodopiante coluna de ar, José entrou em casa, cerrou a porta atrás de si, e ali ficou encostado por um minuto, aguardando que os olhos se habituassem à meia penumbra. Ao lado dele, a candeia brilhava palidamente, quase sem irradiar luz, inútil. Maria, deitada de costas, estava acordada e atenta, olhava fixamente um ponto em frente, e parecia esperar. Sem pronunciar palavra, José aproximou-se e afastou devagar o lençol que a cobria. Ela desviou os olhos, soergueu um pouco a parte inferior da túnica, mas só acabou de puxá-la para cima, à altura do ventre, quando ele já se vinha debruçando e procedia do mesmo modo com a sua própria túnica, e Maria, entretanto, abrira as pernas, ou as tinha aberto durante o sonho e desta maneira as deixara ficar, fosse por inusitada indolência matinal ou pressentimento de mulher casada que conhece os seus deveres. Deus, que está em toda a parte, estava ali, mas, sendo aquilo que é, um puro espírito, não podia ver como a pele de um tocava a pele do outro, como a carne dele penetrou a carne dela, criadas uma e outra para isso mesmo, e, provavelmente, já nem lá se encontraria quando a semente sagrada de José se derramou no sagrado interior de Maria, sagrados ambos por serem a fonte e a taça da vida, em verdade há coisas que o próprio Deus não entende, embora as tivesse criado. Tendo pois saído para o pátio, Deus não pôde ouvir o som agónico, como um estertor, que saiu da boca do varão no instante da crise, e menos ainda o levíssimo gemido que a mulher não foi capaz de reprimir. Apenas um minuto, ou nem tanto, repousou José sobre o corpo de Maria. Enquanto ela puxava para baixo a túnica e se cobria com o lençol, tapando depois a cara com o antebraço, ele, de pé no meio da casa, de mãos levantadas, olhando o tecto, pronunciou aquela sobre todas terrível bênção, aos homens reservada, Louvado sejas tu, Senhor, nosso Deus, rei do universo, por não me teres feito mulher. Ora, a estas alturas, Deus já nem no pátio devia estar, pois não tremeram as paredes da casa, não desabaram, nem a terra se abriu. Apenas, pela primeira vez, se ouviu Maria, e humildemente dizia, como de mulheres se espera que seja sempre a voz, Louvado sejas tu, Senhor, que me fizeste conforme a tua vontade, ora, entre estas palavras e as outras, conhecidas e aclamadas, não há diferença nenhuma, repare-se, Eis a escrava do Senhor, faça-se em mim segundo a tua palavra, está patente que quem disse isto podia, afinal, ter dito aquilo. Depois, a mulher do carpinteiro José levantou-se da esteira, enrolou-a juntamente com a do marido e dobrou o lençol comum.

 

Vídeos

Evangelho Segundo Jesus Cristo, de José Saramago | Ler Antes de Morrer


Canal Ler Antes de Morrer (24/03/20).

 

O Evangelho Segundo Jesus Cristo (José Saramago) | Tatiana Feltrin


Canal Tatiana Feltrin (16/04/17).

 

José Saramago no Jô Soares


Canal do YouTube Rafael Garcia.

 

Roda Viva | José Saramago | 13/10/2003


Programa produzido pela TV Cultura.

 

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Detalhes do e-book

  • Formato: eBook Kindle/Amazon
  • Tamanho do arquivo: 1589 KB
  • Selo: Companhia das Letras (6 de maio de 2005)
  • Editora: Companhia das Letras
  • Número de páginas: 445 páginas
  • Idioma: Português
  • ASIN: B009WW7TV0

Detalhes do livro físico

  • Formato: brochura. Amazon
  • Dimensões: 20,8 x 13,8 x 2,6 cm
  • Peso líquido: 0,567 kg
  • Número de páginas: 448 páginas
  • Selo: Companhia das Letras, Edição: 1 (31 de outubro de 1991)
  • Editora: Companhia das Letras
  • ISBN-10: 8571642095
  • ISBN-13: 978-8571642096
  • Idioma: Português
  • ISBN-13: 9788571642096

 

Outro livro do mesmo autor: Caim: romance.

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“Caim: romance”, de José Saramago https://quarentena.org/indicacoes/caim-romance-jose-saramago-cia-das-letras/ https://quarentena.org/indicacoes/caim-romance-jose-saramago-cia-das-letras/#respond Thu, 21 May 2020 03:18:49 +0000 https://quarentena.org/?post_type=product&p=5887 José Saramago reconta episódios bíblicos do Velho Testamento sob o ponto de vista de Caim, que, depois de assassinar seu irmão, trava um incomum acordo com Deus e parte numa jornada que o levará do jardim do Éden aos mais recônditos confins da criação.]]> Apresentação Caim, José Saramago

Se, em O Evangelho segundo Jesus Cristo, José Saramago nos deu sua visão do Novo Testamento, neste Caim ele se volta aos primeiros livros da Bíblia, do Éden ao dilúvio, imprimindo ao Antigo Testamento a música e o humor refinado que marcam sua obra. Num itinerário heterodoxo, Saramago percorre cidades decadentes e estábulos, palácios de tiranos e campos de batalha, conforme o leitor acompanha uma guerra secular, e de certo modo involuntária, entre criador e criatura. No trajeto, o leitor revisitará episódios bíblicos conhecidos, mas sob uma perspectiva inteiramente diferente.

Para atravessar esse caminho árido, um deus às turras com a própria administração colocará Caim, assassino do irmão Abel e primogênito de Adão e Eva, num altivo jegue, e caberá à dupla encontrar o rumo entre as armadilhas do tempo que insistem em atraí-los. A Caim, que leva a marca do senhor na testa e portanto está protegido das iniquidades do homem, resta aceitar o destino amargo e compactuar com o criador, a quem não reserva o melhor dos julgamentos. Tal como o diabo de O Evangelho, o deus que o leitor encontra aqui não é o habitual dos sermões: ao reinventar o Antigo Testamento, Saramago recria também seus principais protagonistas, dando a eles uma roupagem ao mesmo tempo complexa e irônica, cujo tom de farsa da narrativa só faz por acentuar.

A volta aos temas religiosos serve, também, para destacar o que há de moderno e surpreendente na prosa de Saramago: aqui, a capacidade de tornar nova uma história que conhecemos de cabo a rabo, revelando com mordacidade o que se esconde nas frestas dessas antigas lendas. Munido de ferina veia humorística, Saramago narra uma estranha guerra entre o homem e o senhor. Mais que isso, investiga a fundo as possibilidades narrativas da Bíblia, demonstrando novamente que, ao recontar o mito e confrontar a tradição, o bom autor volta à superfície com uma história tão atual e relevante quanto se pode ser.

A editora disponibiliza um trecho do livro como degustação em pdf, mas você também poderá lê-los abaixo ou na aba “Trecho da Obra”.

 

Trecho da obra: “Caim: romance”, de José Saramago

Quando o senhor, também conhecido como deus, se apercebeu de que a adão e eva, perfeitos em tudo o que apresentavam à vista, não lhes saía uma palavra da boca nem emitiam ao menos um simples som primário que fosse, teve de fi car irritado consigo mesmo, uma vez que não havia mais ninguém no jardim do éden a quem pudesse responsabilizar pela gravíssima falta, quando os outros animais, produtos, todos eles, tal como os dois humanos, do faça-se divino, uns por meio de mugidos e rugidos, outros por roncos, chilreios, assobios e cacarejos, desfrutavam já de voz própria. Num acesso de ira, surpreendente em quem tudo poderia ter solucionado com outro rápido fiat, correu para o casal e, um após outro, sem contemplações, sem meias-medidas, enfiou-lhes a língua pela garganta abaixo. Dos escritos em que, ao longo dos tempos, vieram sendo consignados um pouco ao acaso os acontecimentos destas remotas épocas, quer de possível certifi cação canónica futura ou fruto de imaginações apócrifas e irremediavelmente heréticas, não se aclara a dúvida sobre que língua terá sido aquela, se o músculo flexível e húmido que se mexe e remexe na cavidade bucal e às vezes fora dela, ou a fala, também chamada idioma, de que o senhor lamentavelmente se havia esquecido e que ignoramos qual fosse, uma vez que dela não fi cou o menor vestígio, nem ao menos um coração gravado na casca de uma árvore com uma legenda sentimental, qualquer coisa no género amo-te, eva. Como uma coisa, em princípio, não deveria ir sem a outra, é provável que um outro objectivo do violento empurrão dado pelo senhor às mudas línguas dos seus rebentos fosse pô-las em contacto com os mais profundos interiores do ser corporal, as chamadas incomodidades do ser, para que, no porvir, já com algum conhecimento de causa, pudessem falar da sua escura e labiríntica confusão a cuja janela, a boca, já começavam elas a assomar. Tudo pode ser. Evidentemente, por um escrúpulo de bom artífi ce que só lhe ficava bem, além de compensar com a devida humildade a anterior negligência, o senhor quis comprovar que o seu erro havia sido corrigido, e assim perguntou a adão, Tu, como te chamas, e o homem respondeu, Sou adão, teu primogénito, senhor. Depois, o criador virou-se para a mulher, E tu, como te chamas tu, Sou eva, senhor, a primeira dama, respondeu ela desnecessariamente, uma vez que não havia outra. Deu-se o senhor por satisfeito, despediu-se com um paternal Até logo, e foi à sua vida. Então, pela primeira vez, adão disse para eva, Vamos para a cama.

Set, o filho terceiro da família, só virá ao mundo cento e trinta anos depois, não porque a gravidez materna precisasse de tanto tempo para rematar a fabricação de um novo descendente, mas porque as gónadas do pai e da mãe, os testículos e o útero respectivamente, haviam tardado mais de um século a amadurecer e a desenvolver sufi ciente potência generativa. Há que dizer aos apressados que o fiat foi uma vez e nunca mais, que um homem e uma mulher não são máquinas de encher chouriços, as hormonas são coisa muito complicada, não se produzem assim do pé para a mão, não se encontram nas farmácias nem nos supermercados, há que dar tempo ao tempo. Antes de set tinham vindo ao mundo, com escassa diferença de tempo entre eles, primeiro caim e depois abel. O que não pode ser deixado sem imediata referência é o profundo aborrecimento que foram tantos anos sem vizinhos, sem distracções, sem uma criança gatinhando entre a cozinha e o salão, sem outras visitas que as do senhor, e mesmo essas pouquíssimas e breves, espaçadas por longos períodos de ausência, dez, quinze, vinte, cinquenta anos, imaginamos que pouco haverá faltado para que os solitários ocupantes do paraíso terrestre se vissem a si mesmos como uns pobres órfãos abandonados na fl oresta do universo, ainda que não tivessem sido capazes de explicar o que fosse isso de órfãos e abandonos. É verdade que dia sim, dia não, e este não com altíssima frequência também sim, adão dizia a eva, Vamos para a cama, mas a rotina conjugal, agravada, no caso destes dois, pela nula variedade nas posturas por falta de experiência, já então se demonstrou tão destrutiva como uma invasão de carunchos a roer a trave da casa. Por fora, salvo alguns pozinhos que vão escorrendo aqui e ali de minúsculos orifícios, o atentado mal se percebe, mas lá por dentro a procissão é outra, não tardará muito que venha por aí abaixo o que tão firme havia parecido. Em situações como esta, há quem defenda que o nascimento de um filho pode ter efeitos reanimadores, senão da libido, que é obra de químicas muito mais complexas que aprender a mudar uma fralda, ao menos dos sentimentos, o que, reconhe ça-se, já não é pequeno ganho. Quanto ao senhor e às suas esporádicas visitas, a primeira foi para ver se adão e eva haviam tido problemas com a instalação doméstica, a segunda para saber se tinham beneficiado alguma coisa da experiência da vida campestre e a terceira para avisar que tão cedo não esperava voltar, pois tinha de fazer a ronda pelos outros paraí sos existentes no espaço celeste. De facto, só viria a aparecer muito mais tarde, em data de que não ficou registo, para expulsar o infeliz casal do jardim do éden pelo crime nefando de terem comido do fruto da árvore do conhecimento do bem e do mal. Este episódio, que deu origem à primeira definição de um até aí ignorado pecado original, nunca ficou bem explicado. Em primeiro lugar, mesmo a inteligência mais rudimentar não teria qualquer difi culdade em compreender que estar informado sempre será preferível a desconhecer, mormente em matérias tão delicadas como são estas do bem e do mal, nas quais qualquer um se arrisca, sem dar por isso, a uma condenação eterna num inferno que então ainda estava por inventar. Em segundo lugar, brada aos céus a imprevidência do senhor, que se realmente não queria que lhe comessem do tal fruto, remédio fácil teria, bastaria não ter plantado a árvore, ou ir pô-la noutro sítio, ou rodeá-la por uma cerca de arame farpado. E, em terceiro lugar, não foi por terem desobedecido à ordem de deus que adão e eva descobriram que estavam nus. Nuzinhos, em pelota estreme, já eles andavam quando iam para a cama, e se o senhor nunca havia reparado em tão evidente falta de pudor, a culpa era da sua cegueira de progenitor, a tal, pelos vistos incurável, que nos impede de ver que os nossos fi lhos, no fi m de contas, são tão bons ou tão maus como os demais.

Ponto de ordem à mesa. Antes de prosseguirmos com esta instrutiva e defi nitiva história de caim a que, com nunca visto atrevimento, metemos ombros, talvez seja aconselhável, para que o leitor não se veja confundido por segunda vez com anacrónicos pesos e medidas, introduzir algum critério na cronologia dos acontecimentos. Assim faremos, pois, começando por esclarecer alguma maliciosa dúvida por aí levantada sobre se adão ainda seria competente para fazer um filho aos cento e trinta anos de idade. À primeira vista, não, se nos ativermos apenas aos índices de fertilidade dos tempos modernos, mas esses cento e trinta anos, naquela infância do mundo, pouco mais teriam representado que uma simples e vigorosa adolescência que até o mais precoce dos casanovas desejaria para si. Além disso, convém lembrar que adão viveu até aos novecentos e trinta anos, pouco lhe faltando, portanto, para morrer afogado no dilúvio universal, pois fi nou-se em dias da vida de lamec, o pai de noé, futuro construtor da arca. Logo, teve tempo e vagar para fazer os fi lhos que fez e muitos mais se estivesse para aí virado. Como já dissemos, o segundo, o que viria depois de caim, foi abel, um moço aloirado, de boa figura, que, depois de ter sido objecto das melhores provas de estima do senhor, acabou da pior forma. Ao terceiro, como também ficou dito, chamaram-lhe set, mas esse não entrará na narrativa que vamos compondo passo a passo com melindres de historiador, por isso aqui o deixamos, só um nome e nada mais. Há quem afirme que foi na cabeça dele que nasceu a ideia de criar uma religião, mas desses delicados assuntos já nos ocupámos avonde no passado, com recriminável ligeireza na opinião de alguns peritos, e em termos que muito provavelmente só virão a prejudicar-nos nas alegações do juízo fi nal quando, quer por excesso quer por defeito, todas as almas forem condenadas. Agora somente nos interessa a família de que o papá adão é cabeça, e que má cabeça foi ela, pois não vemos como chamar-lhe doutra maneira, já que bastou trazer-lhe a mulher o proibido fruto do conhecimento do bem e do mal para que o inconsequente primeiro dos patriarcas, depois de se fazer rogado, em verdade mais por comprazer consigo mesmo que por real convicção, se tivesse engasgado com ele, deixando-nos a nós, homens, para sempre marcados por esse irritante pedaço de maçã que não sobe nem desce. Também não falta quem diga que se adão não chegou a engolir de todo o fruto fatal foi porque o senhor lhes apareceu de repente a querer saber o que se tinha passado ali. Já agora, e antes que se nos esqueça de vez ou o prosseguimento do relato venha a tornar inadequada, por tardia, a referência, revelaremos a visita sigilosa, meio clandestina, que o senhor fez ao jardim do éden numa cálida noite de verão. Como de costume, adão e eva dormiam nus, um ao lado do outro, sem tocar-se, imagem edifi cante mas enganadora da mais perfeita das inocências. Não despertaram eles e o senhor não os despertou. O que ali o tinha levado fora o propósito de emendar uma imperfeição de fabrico que, finalmente o percebera, desfeava seriamente as suas criaturas, e que era, imagine-se, a falta de um umbigo. A superfície esbranquiçada da pele dos seus bebés, que o suave sol do paraíso não conseguira tostar, mostrava-se demasiado nua, demasiado oferecida, de certo modo obscena, se a palavra já existisse então. Sem detença, não fossem eles acordar, deus estendeu o braço e, levemente, premiu com a ponta do dedo indicador o ventre de adão, logo fez um rápido movimento de rotação e o umbigo apareceu. A mesma operação, praticada a seguir em eva, deu resultados similares, ainda que com a importante diferença de o umbigo dela ter saído bastante melhorado no que toca a desenho, contornos e delicadeza de pregas. Foi esta a última vez que o senhor olhou uma obra sua e achou que estava bem.

Cinquenta anos e um dia depois desta afortunada intervenção cirúrgica com a qual se iniciaria uma nova era na estética do corpo humano sob o lema consensual de que tudo nele é melhorável, deu-se a catástrofe. Anunciado por um estrondo de trovão, o senhor fez-se presente. Vinha trajado de maneira diferente da habitual, segundo aquilo que seria, talvez, a nova moda imperial do céu, com uma coroa tripla na cabeça e empunhando o ceptro como um cacete. Eu sou o senhor, gritou, eu sou aquele que é. O jardim do éden caiu em silêncio mortal, não se ouvia nem o zumbido de uma vespa, nem o ladrar de um cão, nem um pio de ave, nem um bramido de elefante. Apenas uma bandada de estorninhos que se havia acomodado numa oliveira frondosa que vinha dos tempos da fundação do jardim levantou voo num só impulso, e eram centenas, para não dizer milhares, que quase obscureceram o céu. Quem desobedeceu às minhas ordens, quem foi pelo fruto da minha árvore, perguntou deus, dirigindo directamente a adão um olhar coruscante, palavra desusada mas expressiva como as que mais o forem. Desesperado, o pobre homem tentou, sem resultado, tragar o bocado de maçã que o delatava, mas a voz não lhe saiu, nem para trás nem para diante. Responde, tornou a voz colérica do senhor, ao mesmo tempo que brandia ameaçadoramente o ceptro. Fazendo das tripas coração, consciente do feio que era pôr as culpas em outrem, adão disse, A mulher que tu me deste para viver comigo é que me deu do fruto dessa árvore e eu comi. Revolveu-se o senhor contra a mulher e perguntou, Que fi zeste tu, desgraçada, e ela respondeu, A serpente enganou-me e eu comi, Falsa, mentirosa, não há serpentes no paraíso, Senhor, eu não disse que haja serpentes no paraíso, mas digo sim que tive um sonho em que me apareceu uma serpente, e ela disse-me, Com que então o senhor proibiu-vos de comerem do fruto de todas as árvores do jardim, e eu respondi que não era verdade, que só não podíamos comer do fruto da árvore que está no meio do paraíso e que morreríamos se tocássemos nele, As serpentes não falam, quando muito silvam, disse o senhor, A do meu sonho falou, E que mais disse ela, pode-se saber, perguntou o senhor, esforçando-se por imprimir às palavras um tom escarninho nada de acordo com a dignidade celestial da indumentária, A serpente disse que não teríamos que morrer, Ah, sim, a ironia do senhor era cada vez mais evidente, pelos vistos, essa serpente julga saber mais do que eu, Foi o que eu sonhei, senhor, que não querias que comêssemos do fruto porque abriríamos os olhos e ficaríamos a conhecer o mal e o bem como tu os conheces, senhor, E que fi zeste, mulher perdida, mulher leviana, quando despertaste de tão bonito sonho, Fui à árvore, comi do fruto e levei-o a adão, que comeu também, Ficou-me aqui, disse adão, tocando na garganta, Muito bem, disse o senhor, já que assim o quiseram, assim o vão ter, a partir de agora acabou-se-lhes a boa vida, tu, eva, não só sofrerás todos os incómodos da gravidez, incluindo os enjoos, como parirás com dores, e não obstante sentirás atracção pelo teu homem, e ele mandará em ti, Pobre eva, começas mal, triste destino vai ser o teu, disse eva, Devias tê-lo pensado antes, e quanto à tua pessoa, adão, a terra ficou amaldiçoada por tua causa, e será com grande sacrifício que dela conseguirás tirar alimento durante toda a tua vida, só produzirá espinhos e cardos, e tu terás de comer a erva que cresce no campo, só à custa de muitas bagas de suor conseguirás arranjar o necessário para comer, até que um dia te venhas a transformar de novo em terra, pois dela foste formado, na verdade, mísero adão, tu és pó e ao pó um dia tornarás. Dito isto, o senhor fez aparecer umas quantas peles de animais para tapar a nudez de adão e eva, os quais piscaram os olhos um ao outro em sinal de cumplicidade, pois desde o primeiro dia souberam que estavam nus e disso bem se haviam aproveitado. Disse então o senhor, Tendo conhecido o bem e o mal, o homem tornou-se semelhante a um deus, agora só me faltaria que fosses colher também do fruto da árvore da vida para dele comeres e viveres para sempre, não faltaria mais, dois deuses num universo, por isso te expulso a ti e a tua mulher deste jardim do éden, a cuja porta colocarei de guarda um querubim armado com uma espada de fogo, o qual não deixará entrar ninguém, e agora vão-se embora, saiam daqui, não vos quero ver nunca mais na minha frente. Carregando sobre os ombros as fedorentas peles, bamboleando-se sobre as pernas trôpegas, adão e eva pareciam dois orangotangos que pela primeira vez se tivessem posto de pé. Fora do jardim do éden a terra era árida, inóspita, o senhor não tinha exagerado quando ameaçou adão com espinhos e cardos. Tal como também havia dito, acabara-se a boa vida.

 

Vídeos

Lançamento de Caim, José Saramago


Canal da Fundação José Saramago (24/03/20).

 

José Saramago no Jô Soares


Canal do YouTube Rafael Garcia.

 

Roda Viva | José Saramago | 13/10/2003


Programa produzido pela TV Cultura.

 

Detalhes do e-book

  • Formato: eBook Kindle/Amazon
  • Tamanho do arquivo: 912 KB
  • Selo: Companhia das Letras (7 de outubro de 2009)
  • Editora: Companhia das Letras
  • Número de páginas: 176 páginas
  • Idioma: Português
  • ASIN: B009XE2C00

Detalhes do livro físico

  • Formato: brochura. Amazon
  • Dimensões: 14,00 X 21,00 cm
  • Peso líquido: 0,231 kg
  • Número de páginas:  176 páginas
  • Selo: Companhia das Letras, Edição: 1 (7 de outubro de 2009)
  • Editora: Companhia das Letras
  • ISBN-10: 8535915397
  • ISBN-13: 978-8535915396
  • Idioma: Português
  • ISBN-13: 9788535915396

 

Outro livro do mesmo autor: “O evangelho segundo Jesus Cristo”.

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“O jardim secreto”, de Frances Hodgson Burnett https://quarentena.org/indicacoes/o-jardim-secreto-de-frances-hodgson-burnett/ https://quarentena.org/indicacoes/o-jardim-secreto-de-frances-hodgson-burnett/#respond Tue, 14 Apr 2020 09:51:39 +0000 https://quarentena.org/?post_type=product&p=5248 O jardim secreto, conta a história de duas crianças solitárias que decidem restaurar um jardim proibido, cujo mistério remete a um acidente ocorrido anos atrás. De Frances Hodgson Burnett.]]> Na célebre obra da inglesa Frances Hodgson Burnett, uma garota solitária e seu primo tornam-se amigos ao descobrirem um jardim cercado de mistérios.

Clássico da literatura inglesa, O jardim secreto conta a história de duas crianças solitárias que decidem restaurar um jardim proibido, cujo mistério remete a um acidente ocorrido anos atrás.

A amizade improvável entre os dois personagens funciona como uma metáfora para a descoberta do mundo e para o autoconhecimento.
Escrito em 1911, o livro já inspirou diversas montagens no teatro e três filmes – entre eles, o longa americano homônimo de 1993, dirigido pela polonesa Agnieszka Holland, vencedor do prêmio Bafta.

Esta edição traz introdução e notas da romancista e crítica literária Alison Lurie e um posfácio de Marise Soares Hansen, mestre em literatura brasileira pela Universidade de São Paulo. Em seu texto, ela traça paralelos do romance com autores importantes de literatura de língua portuguesa, como Eça de Queiroz e Clarice Lispector.

Durante a maior parte de sua vida profissional, Frances Hodgson Burnett foi uma escritora de sucesso. Desde cedo sustentou a si mesma (e a várias outras pessoas) com seus escritos. Suas peças de teatro, contos para revistas e romances ajudaram a tirar a mãe e as irmãs da pobreza. Sua carreira também pagou pela pós-graduação em medicina do primeiro marido e garantiu ao segundo a oportunidade de estrelar uma peça em Londres.

Leia um trecho, clicando aqui.

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“O vilarejo”, de Raphael Montes https://quarentena.org/indicacoes/o-vilarejo-de-raphael-montes/ https://quarentena.org/indicacoes/o-vilarejo-de-raphael-montes/#respond Tue, 14 Apr 2020 09:45:01 +0000 https://quarentena.org/?post_type=product&p=5245 O Vilarejo, de Raphael Montes, é uma obra instigante que nos leva ao coração de um vilarejo isolado, palco de sete contos sinistros inspirados nos pecados capitais. Com uma narrativa que entrelaça mistério, terror e profundas reflexões sobre a natureza humana, Montes explora as sombras da alma e os extremos a que as pessoas podem chegar sob condições adversas. Cada história, rica em simbolismo e tensão, revela os segredos e os desejos mais obscuros de seus personagens, tornando "O Vilarejo" uma leitura fascinante e perturbadora, que desafia os limites entre o bem e o mal.  ]]> Introdução a “O Vilarejo”, de Raphael Montes

“O Vilarejo”, obra do aclamado autor brasileiro Raphael Montes, transporta os leitores para um cenário isolado e sombrio, onde o suspense e o terror se entrelaçam com a natureza humana. Através de sete histórias interconectadas, Montes explora as profundezas dos pecados capitais, tecendo uma narrativa que desafia a percepção de moralidade e justiça. Este livro não é apenas uma coleção de contos; é um labirinto onde cada página revela um pouco mais sobre os mistérios de um vilarejo perdido no tempo e espaço.

O vilarejo de Raphael Montes: A imagem captura a essência de um vilarejo isolado, coberto por uma espessa camada de neve. Uma luz misteriosa e etérea ilumina suavemente as construções rústicas, lançando sombras longas e criando uma atmosfera de suspense e mistério. Simbolismos sutis, que evocam os sete pecados capitais, estão habilmente integrados ao cenário — nas formas que a neve assume, nas estruturas das casas e talvez até na maneira como a luz e a sombra interagem, sugerindo segredos e histórias não contadas. Há uma sensação palpável de isolamento e introspecção, convidando o observador a ponderar sobre as histórias ocultas dos moradores e os mistérios encobertos pela beleza gélida do vilarejo

Raphael Montes constrói, com maestria, um universo onde o medo e a curiosidade caminham lado a lado. Cada história, inspirada em um pecado capital, reflete não apenas os demônios internos dos personagens, mas também os desafios e dilemas enfrentados pela humanidade ao longo da história. “O Vilarejo” convida o leitor a mergulhar em suas páginas, prometendo uma experiência única, onde a tensão é palpável do início ao fim.

A relevância de “O Vilarejo” transcende o gênero do terror e suspense, posicionando-se como um estudo profundo sobre o ser humano e suas falhas. Raphael Montes, com sua narrativa envolvente e personagens ricamente construídos, oferece uma obra que é ao mesmo tempo perturbadora e cativante. A leitura deste livro é uma jornada pelo desconhecido, um convite para explorar os cantos mais escuros da alma humana.

 

Quem é Raphael Montes?

Raphael Montes é um dos nomes mais promissores da literatura brasileira contemporânea, especialmente reconhecido por revitalizar o gênero do suspense e terror no país. Com uma habilidade notável para criar tramas cheias de reviravoltas e personagens complexos, Montes conquistou leitores e crítica. Suas obras são marcadas por um olhar crítico sobre a sociedade e uma capacidade única de mergulhar nos abismos da psique humana. “O Vilarejo” é mais uma prova de seu talento em contar histórias que ficam gravadas na memória.

 

Explorando “O Vilarejo”

“O Vilarejo” apresenta-se como uma coletânea de sete contos interligados, cada um explorando um dos pecados capitais através de personagens e situações que refletem as sombras da alma humana. A configuração em um vilarejo isolado e assolado por mistérios e tragédias serve de palco para a manifestação desses pecados de maneiras surpreendentes e, por vezes, aterrorizantes. Montes utiliza essa estrutura narrativa para tecer uma tapeçaria rica em simbolismo e metáforas, desafiando o leitor a desvendar os segredos escondidos nas entrelinhas de cada história.

 

Sinopse de O Vilarejo, de Raphael Montes

Em 1589, o padre e demonologista Peter Binsfeld fez a ligação de cada um dos pecados capitais a um demônio, supostamente responsável por invocar o mal nas pessoas. É a partir daí que Raphael Montes cria sete histórias situadas em um vilarejo isolado, apresentando a lenta degradação dos moradores do lugar, e pouco a pouco o próprio vilarejo vai sendo dizimado, maculado pela neve e pela fome. Assim, nasce O Vilarejo.

As histórias podem ser lidas em qualquer ordem, sem prejuízo de sua compreensão, mas se relacionam de maneira complexa, de modo que ao término da leitura as narrativas convergem para uma única e surpreendente conclusão.

 

 

Trecho destaque da obra O Vilarejo, de Raphael Montes

Quarentena.org O vilarejo de Raphael Montes. Banquete para Anatole. Interior rústico e mal iluminado de uma casa em um vilarejo nevado, onde Felika, uma mãe preocupada, observa cautelosamente pela janela coberta de gelo, enquanto seus filhos sentam-se à mesa de madeira com comida escassa, capturando a luta da família pela sobrevivência entre esperança e desespero.

Neste marcante trecho de “O Vilarejo“, Raphael Montes nos leva ao coração da luta pela sobrevivência em condições extremas. Através da história de Felika e sua família, enfrentando a fome e o frio em um vilarejo isolado, Montes explora a resiliência humana diante da adversidade. A decisão de Felika de esconder alimentos para salvar sua família, enquanto o marido, Anatole, sai em busca de provisões, retrata vividamente a tensão e o desespero vividos pelos personagens. Este trecho não apenas avança a narrativa, mas também serve como uma janela para os temas mais profundos do livro: a fragilidade da sociedade e a luta incessante pela sobrevivência. Montes habilmente entrelaça o suspense e a humanidade, deixando os leitores contemplativos sobre até onde iriam para proteger seus entes queridos.

Leia também clicando aqui.

BANQUETE PARA ANATOLE

Felika manda que as crianças comam depressa, antes que alguém nos arredores sinta o cheiro da comida. Depois de tanto tempo sem alimento, a família vizinha pode estar com o olfato aguçado e perceber que, ao contrário de todos, eles ainda têm o que comer. As casas no vilarejo são perigosamente próximas.

Ela se julga esperta. Enterrou entre a neve e a terra todo o alimento, de modo que nada foi apreendido quando os guardas passaram semanas atrás fazendo a coleta. Escolheu com cuidado o local do esconderijo — um espaço de meio metro quadrado atrás da fossa do terreno — e administra a guarnição restante para que não morram de fome até Anatole voltar. Vez ou outra afasta a cortina da janela, na esperança de ver o marido se aproximando da casa, com um ou dois coelhos na maleta para alimentar os três filhos que ficaram para trás.

— Vou buscar comida. Se permanecermos aqui, vamos morrer de fome ou de frio como os outros — disse Anatole, enquanto se vestia para enfrentar a neve. Partiria a pé, pela f loresta. — Eu volto.

Tantos dias passados e o marido ainda não voltou. Ela não acredita que ele tenha fugido e abandonado a família. Tampouco que tenha morrido. Anatole é um homem forte, corajoso. Aparecerá a qualquer momento. Cabe a ela mantê-los vivos enquanto isso. As crianças comem de dois em dois dias. Felika, acostumada ao protesto da barriga, de quatro em quatro. Por seus cálculos, os mantimentos do esconderijo duram mais cinco semanas.

O velho estava certo. O vilarejo vem sendo dizimado dia após dia. O luto sentou-se à mesa. Ninguém chora os mortos. Não podem desperdiçar energia lamentando a partida dos que não suportaram o frio e a fome. Há duas semanas, Irina, a vizinha da direita, gritou durante toda a madrugada a morte de seu bebê. No dia seguinte, estava morta. Foi burra. Felika não é burra e não se permite sentir pena de ninguém.

No passado, a vizinhança era diferente. Os moradores jantavam juntos, riam, contavam histórias entre os goles de vodca. Agora não mais. Se souberem que Felika esconde restos de raízes e brotos, além de uns ossos de rato para dar sabor de carne ao caldo, tomam tudo de sua família. Vão exigir dividir entre todos, como se
ela fosse responsável pela vida deles.

— Comam, comam logo — sussurra mais uma vez para os filhos.

As crianças não querem comer. O caldo está ralo, com um tom avermelhado. Felika prefere não brigar. Se brigar, elas vão chorar e perder energia. Melhor deixar que comam quando tiverem vontade.

Felika bebe o caldo em goladas e esconde a cumbuca atrás da lareira. Acostumada ao silêncio, assusta-se ao ouvir passadas na neve. Com as forças que lhe restam, corre para a janela, abre uma fresta na cortina. Busca a silhueta de alguém na brancura. Não há nada. Pensa que está tendo alucinações. Os passos se repetem e, por um segundo, ela pressente que Anatole finalmente voltou. Enche-se de alegria.

Sabe, entretanto, que não pode ser descuidada: os saques às casas do vilarejo têm sido frequentes. Na mesa da cozinha, pega a faca usada para fatiar a carne. Aproxima-se da porta, ouvidos aguçados, e espera que cheguem mais perto.

— Todos para a cama agora. Vamos deitar — diz para as crianças, sem impor a voz.

Um sol tímido desponta no céu, mas ela não pode deixar que as crianças brinquem lá fora. Os vizinhos irão vê-las bem-dispostas e começarão a se perguntar o que Felika faz para mantê-las vivas por tanto tempo. Exaustas, as crianças não discutem com a mãe: continuam à mesa, as mãozinhas nos talheres imundos.

A batida na porta vem seca e breve. Felika abre novamente a cortina. Reconhece o perfil ressequido da sra. Helga: usa um vestido
pesado de cores escuras, uma manta grossa envolta no pescoço esquelético e traz na mão direita uma pesada sacola de pano. A mão
esquerda se esconde no bolso do vestido.

Felika não vê a sra. Helga há mais de onze meses. Pensava que a velha já tinha morrido. Não podia supor que uma cega fosse sobreviver naquele frio glacial por tanto tempo.

— Que é? — murmura, sem girar o ferrolho.

— Preciso falar com você, criança — diz a sra. Helga, a voz
rouca.

Felika não responde. Melhor esperar que a velha vá embora.

— Preciso falar com você — repete. — Coisas estranhas estão
acontecendo.

A fome desproveu Felika de qualquer curiosidade sobre a vida alheia. Há tempos não conversa com ninguém do vilarejo e pretende continuar assim até que Anatole volte.

— Não vou abrir a porta — diz.

— Eu não estou com os guardas. As coletas cessaram há mais de três luas. Não precisa ter medo, criança.

O murmúrio da sra. Helga é doce e sedutor. Tão gostoso escutar uma voz diferente…

— Não acredito em você, velha — diz Felika. — Vá embora.

— As estradas estão todas bloqueadas pela neve. É impossível entrar ou sair do vilarejo sem ser morto pelo frio. Por favor, preciso
que me ajude. Coisas estranhas estão acontecendo.

É a segunda vez que a sra. Helga diz aquilo. O que ela pretende? Como se Felika tivesse lhe feito alguma pergunta, a mulher
continua:

— Astor está morto. Alguém o matou.

Astor é o cão-guia da sra. Helga, sua única companhia desde que o coronel Dimitri morreu na guerra. Anos atrás, era Astor quem anunciava o amanhecer ao vilarejo com seu latido de husky. Nos últimos tempos, Astor havia se calado, mas Felika não estranhou. Supôs que o cachorro tivesse morrido com a dona.

— Alguém matou Astor — repete a sra. Helga. — Veja, criança.

Pela janela, encara Felika com os olhos vazios, um negrume aterrador no lugar onde deveriam estar os glóbulos oculares. Abre a sacola de pano. Estica o braço, revelando o crânio do cachorro, fiapos de pelo presos em pontos de sangue coagulado. Moscas-da-neve brincam no esqueleto do cão.

— Tiraram toda a carne dele. Só sobrou isto — diz. Uma lágrima escorre pelo rosto ossudo.

A cena enoja Felika. Ela fecha um pouco a cortina para que as crianças não vejam o que se passa.

— Preciso saber quem matou meu Astor — diz a sra. Helga.

— Não sei, velha. Eu não fiz nada.

Felika não tem interesse neste assunto.

— Mas, criança, quem pode ter feito isto?

— Já lhe disse que não sei. Nem lembro quando saí de casa pela última vez. Tente com Ivan, o ferreiro. Ele sempre sabe de tudo.

— Já bati na porta dele. Nem atendeu. Tentei em outras casas. Jekaterina, Latasha, as irmãs Vália e Vonda. Ninguém responde. Nem mesmo Krieger, o aleijado, que nunca sai de casa… O vilarejo está vazio, Felika. Todos foram embora.

— Não vou abrir a porta.

— Por favor, criança. Tenho me sentido tão sozinha… Me deixe entrar.

Felika olha de novo para o braço esquerdo da sra. Helga e se arrepia. Sem dúvida, a velha cega esconde algo. Um revólver ou até mesmo uma faca. Não seria estúpida de expor sua família com tanta facilidade.

— Não vou abrir.

— Precisava conversar com alguém…

— Já conversamos. Agora vá e trate de se manter viva.

A sra. Helga exibe um sorriso triste, com as gengivas escurecidas, sem dentes.

— Nós vamos todos morrer, Felika. Cedo ou tarde, a fome ou o frio vai nos matar — diz. — Brigd partiu há uma semana. Morreu dormindo. Os ossos congelados.

A sra. Brigd é irmã da sra. Helga e mora na casa ao lado. Felika pensa que deveria expressar suas condolências, mas não quer fazer muito esforço.

— Então, vá embora antes que morra também, velha. Quando Anatole voltar, faço uma visita.

Felika fecha a cortina. Escuta a sra. Helga se afastar até que o silêncio sepulcral engole o vilarejo outra vez. Volta-se para os filhos, que, ainda sentados, parecem ter prestado atenção a toda a conversa. O caçula Rurik está nitidamente assustado, os olhinhos verdes girando perdidos sobre o prato. Para acalmá-los, Felika decide contar-lhes uma história, a jornada de um guerreiro que luta contra monstros para defender a família. Tenta
imaginar detalhes pitorescos que preencham a aventura, mas uma dor de cabeça mórbida a impede de realizar longos mergulhos criativos.

Entre fadas e dragões, Felika ouve nova batida à porta. Não pode acreditar que a impertinente sra. Helga voltou. Caminha devagar, hesita. Ao puxar as cortinas, mal se contém: Anatole! Gargalha, louca de felicidade. Abre a porta em um rompante e lhe entrega um beijo no rosto. Anatole também sorri. Mostra a maleta que traz consigo e Felika vê os coelhos e ratos que o marido caçou. Não passarão fome!

— Você está ótima, querida! — diz o marido, enquanto aperta suas bochechas. Espanta-se que a esposa esteja tão sadia e corada.

— Tenho dado meu jeito — gaba-se Felika.

— Parece até um tanto mais… gorda!

— Ora, não seja bobo, Anatole!

— Onde estão as crianças?

— Na mesa, jantando. Vamos comemorar! — exalta-se. Estala outro beijo na bochecha do marido. Caminham de braços dados.

Ao olhar para a sala, Anatole tropeça. Sente o corpo tontear e precisa se apoiar na poltrona para não cair no chão. Vomita a pouca comida que guarda no estômago. Olha para o rosto da mulher, mas ela continua a sorrir.

Espalhados pelo pequeno cômodo, Anatole reconhece os corpos de vários moradores do vilarejo. No sofá, sem a cabeça, está Krieger, o aleijado. Ao lado, Ivan, o ferreiro, tem uma faca rústica cravada no peito. Mais perto da lareira, as pernas e as cabeças de Vália e de Latasha, enfiadas em espetos compridos, esperam o momento de serem assadas.

Anatole corre para a cozinha. Os corpos dos três filhos jazem desmembrados na mesa. Um véu rubro escorre pelos pratos e pelas cadeiras. Nacos de braços e pernas infantis saem da travessa fumegante pousada na toalha de mesa com motivos florais. Num prato ao centro, partes do pequeno Rurik mergulham num caldo avermelhado.

— O que você fez?

Felika acaricia a cabeça da jovem Maisha, espetada por um garfo de quatro dentes.

— Viram, crianças? O papai trouxe comida. Não vamos mais passar fome — diz. Rói um dedinho tostado que restou em seu prato. — Ora, querido, venha dar um beijo nos seus filhos. Hoje é um dia especial… Vou preparar um banquete para o jantar!

 

Análise do Trecho e Técnicas Literárias

A análise do trecho destacado de “O Vilarejo” nos permite apreciar as técnicas literárias de Raphael Montes. O autor utiliza uma narrativa envolvente para explorar temas complexos como a sobrevivência, a moralidade e a natureza humana diante de adversidades extremas. Através de descrições detalhadas e diálogos carregados de emoção, Montes constrói um cenário onde o leitor pode sentir a tensão e o desespero dos personagens. Este trecho exemplifica como “O Vilarejo” vai além do terror, oferecendo uma reflexão sobre as escolhas humanas em situações limite.

 

A Importância Temática de “O Vilarejo”

A relevância temática de “O Vilarejo” está na sua capacidade de tecer uma narrativa que reflete sobre a condição humana através do prisma dos sete pecados capitais. Raphael Montes cria um espelho da sociedade no microcosmo do vilarejo, permitindo uma análise profunda sobre como o isolamento e a adversidade podem amplificar tanto a virtude quanto a vileza. Esta obra desafia os leitores a refletir sobre questões morais e éticas, destacando-se não só pela maestria narrativa mas também pelo impacto duradouro de suas mensagens.

 

Resenha/Comentário sobre O Vilarejo, de Raphael Montes

O Vilarejo” de Raphael Montes foi amplamente elogiado por críticos e leitores. A obra é destacada por sua narrativa intrigante e habilidade em explorar os aspectos mais sombrios da psique humana. As resenhas enfatizam a originalidade dos contos, a profundidade dos personagens e a maneira como Montes tece os pecados capitais na trama. A recepção positiva sublinha o talento do autor em criar um suspense psicológico que mantém os leitores envolvidos do início ao fim, consolidando “O Vilarejo” como uma leitura indispensável no gênero.


Resenha do canal do YouTube Hora do Terror (03/12/17).

 

Por Que Ler “O Vilarejo”, de Raphael Montes?

Ler “O Vilarejo” de Raphael Montes é mergulhar em uma experiência literária única, onde suspense e horror se encontram com uma profunda análise da natureza humana. Esta obra não apenas entretém, mas também provoca reflexão sobre os dilemas morais e éticos enfrentados pelos personagens em situações extremas. Recomendado para quem aprecia narrativas envolventes e complexas, “O Vilarejo” é uma leitura obrigatória que desafia e satisfaz, deixando marcas duradouras na memória de seus leitores.


 

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“Nada me faltará”, Lourenço Mutarelli https://quarentena.org/indicacoes/nada-me-faltara-lourenco-mutarelli/ https://quarentena.org/indicacoes/nada-me-faltara-lourenco-mutarelli/#respond Tue, 14 Apr 2020 09:17:26 +0000 https://quarentena.org/?post_type=product&p=5243 ágil, narrada somente com diálogos, Lourenço Mutarelli conta a história de um homem que ressurge um ano depois de ter desaparecido junto com a mulher e a filha. Incapaz de se lembrar do que aconteceu, ele precisa enfrentar a cobrança dos amigos e as suspeitas da mãe e da polícia.]]> Teaser

 

Apresentação

Nada me faltará narra a história de Paulo, um homem que desaparece misteriosamente com a mulher e a filha e ressurge um ano depois, sem explicações, na frente do prédio onde morava. Paulo é interrogado por médicos, policiais, amigos e familiares, mas não se lembra de nada do que aconteceu. Levado para a casa da mãe, ele se entrega a um estado de cansaço e desinteresse.

A situação se complica conforme aumenta a cobrança para que ele volte a se comportar como antes, mas ninguém parece entender que, para Paulo, tudo está bem. O desinteresse pelo paradeiro da mulher e da filha alimenta a suspeita de um investigador e da própria mãe. Somente seu terapeuta, dr. Leopoldo, se mostrará compreensivo para tentar desvendar o caso de seu paciente.

Ao realçar o descompasso entre as realidades dos vários personagens, Mutarelli elabora como poucos o tema da incomunicabilidade. Com um registro coloquial preciso e um humor estranho e desconfortável, ele explora um dos elementos típicos de sua obra: o limite incerto entre sanidade e loucura.

 

Trecho da obra

Carlos?
Oi, Cris.
Onde você está?
Acabei de chegar em casa. Quer ligar aqui?
Não… Ele apareceu.
Encontraram ele?
Ele apareceu.
Ele apareceu? Ele está vivo?
Ele está bem.
Onde ele estava? Como ele está?
Ele apareceu.
Mas onde? Onde o encontraram? Como ele está?
Ele apareceu do nada.
Meu Deus! E como ele está?
Ele está bem.
Você já viu ele?
Não. Quem me ligou foi a Fernanda. Ele apareceu na casa da dona Inês.
Ele apareceu… O que foi que ele disse? Por onde ele andou durante todo esse tempo? E como está a Luci, e a menina?
Ele não lembra de nada.
Não lembra? Como assim, não lembra? Minha Nossa! E a Luci e a Ingrid?
Ele não sabe.
Então elas continuam desaparecidas? E ele não se lembra de nada?
É. Parece que a polícia está lá, investigando.
E onde ele está?
Ele está no hospital.
Hospital? Em que hospital? Mas ele está bem?
Está. Está na Beneficência Portuguesa. Parece que ia fazer uns exames.
Que coisa… Eu já tinha perdido as esperanças… Você já avisou o Pedro?
Não, vou ligar agora.
Eu vou até o hospital. Você sabe em qual quarto ele está?
Não. Mas eu também estou indo para lá.
Então, nos vemos no hospital.

Como vai, dona Inês?
Oi, Carlos. Ele não lembra de nada… Meu Deus do céu!
Mas ele está bem?
Ele está bem. Eu é que quase morro de susto.
Ele não lembra de nada? Ele está com amnésia?
Ele se lembra de tudo até o dia do desaparecimento. O que aconteceu nesse tempo todo ele não sabe.
E a Luci?
Ele não sabe. Ele nem sabia que ela tinha desaparecido junto com ele.
Meu Deus! Que coisa!
Nem me fale. Mas pelo menos ele está bem. Ele não sabe o que aconteceu com a minha netinha.
Calma, dona Inês. Eu acho que com o tempo ele deve recuperar a memória. E, se ele voltou, elas também vão aparecer.
Ele chegou em casa como se nada tivesse acontecido.
E o que os médicos falaram?
Você sabe como são esses médicos…
Pelo menos ele está aqui de volta e está bem, não é?
É.
Olha lá a Cris.

Oi, dona Inês, como vai a senhora?
Vamos levando, minha filha.
Oi, Carlos.
E aí?
Você já esteve com ele?
Não, tem um policial conversando com ele agora.
O policial veio falar comigo também. Veio perguntar se ele tinha inimigos. Se tinha envolvimento com drogas, se o casamento ia bem.
E o que a senhora disse?
Eu disse a verdade. Disse que meu filho é uma pessoa correta, que tem uma vida absolutamente normal. Olha lá! Aquele que está vindo é o tal policial. Duvido que a mãe desse sujeitinho possa dizer o mesmo dele.
Calma, dona Inês. A senhora precisa tentar manter a calma.
Por que ele não veio me interrogar quando o Paulo desapareceu? Por que eles não o encontraram? Cadê minha neta? E minha nora?
Calma, dona Inês. O Carlos está certo. Não vale a pena a senhora ficar assim. Agora a gente precisa curtir o Paulo. Eu acho que logo ele vai acabar se lembrando de tudo, e assim encontraremos a Luci e a Ingrid.
Deus te ouça, minha filha. Deus te ouça. Um ano. O que terá acontecido nesse tempo todo? Vou aproveitar que o policial saiu e vou até o quarto. Eles só estão deixando entrar uma pessoa por vez. Quando eu voltar, um de vocês entra.
Mas a senhora já esteve com ele?
Já, minha filha. É que eu quero ficar mais um pouquinho.
Claro.

 

Depoimento do autor

Sou um grande admirador da música minimalista. Glass, Cage, Pärt, Bryars, Eno, Ostertag, Reich, etc… Embora meus primeiros romances reflitam isso (O cheiro do raloO natimorto) tentei experimentar algo diferente em A arte de produzir efeito sem causa.

Resolvi retomar essa idéia de forma mais radical nesse livro. Busquei não o minimalismo literário, mas o musical. O mesmo experimentado principalmente por Glass e Cage. Glass não gosta da expressão “minimalismo”, prefere chamar de “música com estrutura repetida”. Se prestar atenção em sua música, verá que a variação se dá de forma tão sutil e, mesmo assim, aos poucos transforma toda a base e às vezes até mesmo o tema. Essa foi minha principal inspiração e minha meta. Para transpor essa idéia para um enredo, pensei em uma história simples, um pequeno tema, um mistério. A história do desaparecimento de uma família. A melhor forma que encontrei para variar minimamente e gradativamente esse enredo foi recontar essa história por diferentes personagens. Achei que a idéia do minimalismo deveria estar também — e principalmente — na narrativa. Por isso optei em narrá-la em diálogos. Diálogos simples. Cotidianos. Sem poesia ou afetação. Queria construir um livro com o mínimo possível. O desafio era tornar a história inteligível. Aproveitando minha trajetória nas histórias em quadrinhos, a idéia que me ocorreu foi narrar uma história usando apenas os balões. Os diálogos. Sem recordatórios ou caixas de texto que situassem o leitor no tempo ou no espaço.

Nada me faltará é o resultado dessa experiência.

 

 

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“Memórias Póstumas de Brás Cubas”, de Machado de Assis https://quarentena.org/indicacoes/memorias-postumas-de-bras-cubas-machado-de-assis-penguin/ https://quarentena.org/indicacoes/memorias-postumas-de-bras-cubas-machado-de-assis-penguin/#respond Tue, 14 Apr 2020 07:33:46 +0000 https://quarentena.org/?post_type=product&p=5235 Memórias póstumas de Brás Cubas é um clássico de Machado de Assis, com o apuro editorial da coleção Penguin-Companhia.]]>

Apresentação de Memórias Póstumas de Brás Cubas escrito por Machado de Assis

Em 1881, Machado de Assis lançou aquele que seria um divisor de águas não só em sua obra, mas na literatura brasileira: Memórias póstumas de Brás Cubas. Ao mesmo tempo em que marca a fase mais madura do autor, o livro é considerado a transição do romantismo para o realismo.

Num primeiro momento, a prosa fragmentária e livre de Memórias póstumas de Brás Cubas, misturando elegância e abuso, refinamento e humor negro, causou estranheza, inclusive entre a crítica. Com o tempo, no entanto, o defunto autor que dedica sua obra ao verme que primeiro roeu as frias carnes de seu cadáver tornou-se um dos personagens mais populares da nossa literatura. Sua história, uma celebração do nada que foi sua vida, foi transformada em filmes, peças e HQs, e teve incontáveis edições no Brasil e no mundo, conquistando admiradores que vão de Susan Sontag a Woody Allen.

Esta edição de Memórias póstumas de Brás Cubas reproduz o prólogo do próprio autor à terceira edição do livro, em que ele responde às dúvidas dos primeiros leitores. Traz ainda prefácio de Hélio de Seixas Guimarães, professor livre-docente na USP e pesquisador do CNPq, e estabelecimento de texto e notas de Marta de Senna, cocriadora e editora da revista eletrônica Machado de Assis em Linha, e Marcelo Diego, pesquisador da obra de Machado na Universidade Princeton.

A editora disponibiliza um trecho como degustação em pdf, mas você também pode lê-lo logo abaixo.

 

Índice / Sumário do livro Memórias póstumas de Brás Cubas

Prefácio — por Hélio de Seixas Guimarães

Nota sobre o texto

MEMÓRIAS PÓSTUMAS DE BRÁS CUBAS

Dedicatória
Prólogo
Ao leitor
i. Óbito do autor
ii. O emplasto
iii. Genealogia
iv. A ideia fixa
v. Em que aparece a orelha de uma senhora
vi. Chimène, qui l’eût dit? Rodrigue, qui l’eût cru?
vii. O delírio
viii. Razão contra sandice
ix. Transição
x. Naquele dia
xi. O menino é pai do homem
xii. Um episódio de 1814
xiii. Um salto
xiv. O primeiro beijo
xv. Marcela
xvi. Uma reflexão imoral
xvii. Do trapézio e outras cousas
xviii. Visão do corredor
xix. A bordo
xx. Bacharelo‑me
xxi. O almocreve
xxii. Volta ao Rio
xxiii. Triste, mas curto
xxiv. Curto, mas alegre
xxv. Na Tijuca
xxvi. O autor hesita
xxvii. Virgília?
xxviii. Contanto que…
xxix. A visita
xxx. A flor da moita
xxxi. A borboleta preta
xxxii. Coxa de nascença
xxxiii. Bem‑aventurados os que não descem
xxxiv. A uma alma sensível
xxxv. O caminho de Damasco
xxxvi. A propósito de botas
xxxvii. Enfim!
xxxviii. A quarta edição
xxxix. O vizinho
xl. Na sege
xli. A alucinação
xlii. Que escapou a Aristóteles
xliii. Marquesa, porque eu serei marquês
xliv. Um Cubas!
xlv. Notas
xlvi. A herança
xlvii. O recluso
xlviii. Um primo de Virgília
xlix. A ponta do nariz
l. Virgília casada
li. É minha!
lii. O embrulho misterioso
liii. …….
liv. A pêndula
lv. O velho diálogo de Adão e Eva
lvi. O momento oportuno
lvii. Destino
lviii. Confidência
lix. Um encontro
lx. O abraço
lxi. Um projeto
lxii. O travesseiro
lxiii. Fujamos!
lxiv. A transação
lxv. Olheiros e escutas
lxvi. As pernas
lxvii. A casinha
lxviii. O vergalho
lxix. Um grão de sandice
lxx. D. Plácida
lxxi. O senão do livro
lxxii. O bibliômano
lxxiii. O luncheon
lxxiv. História de D. Plácida
lxxv. Comigo
lxxvi. O estrume
lxxvii. Entrevista
lxxviii. A presidência
lxxix. Compromisso
lxxx. De secretário
lxxxi. A reconciliação
lxxxii. Questão de botânica
lxxxiii. 13
lxxxiv. O conflito
lxxxv. O cimo da montanha
lxxxvi. O mistério
lxxxvii. Geologia
lxxxviii. O enfermo
lxxxix. In extremis
xc. O velho colóquio de Adão e Caim
xci. Uma carta extraordinária
xcii. Um homem extraordinário
xciii. O jantar
xciv. A causa secreta
xcv. Flores de antanho
xcvi. A carta anônima
xcvii. Entre a boca e a testa
xcviii. Suprimido
xcix. Na plateia
c. O caso provável
ci. A revolução dálmata
cii. De repouso
ciii. Distração
civ. Era ele!
cv. Equivalência das janelas
cvi. Jogo perigoso
cvii. Bilhete
cviii. Que se não entende
cix. O filósofo
cx. 31
cxi. O muro
cxii. A opinião
cxiii. A solda
cxiv. Fim de um diálogo
cxv. O almoço
cxvi. Filosofia das folhas velhas
cxvii. O Humanitismo
cxviii. A terceira força
cxix. Parêntesis
cxx. Compelle intrare
cxxi. Morro abaixo
cxxii. Uma intenção mui fina
cxxiii. O verdadeiro Cotrim
cxxiv. Vá de intermédio
cxxv. Epitáfio
cxxvi. Desconsolação
cxxvii. Formalidade
cxxviii. Na Câmara
cxxix. Sem remorsos
cxxx. Para intercalar no capítulo cxxix
cxxxi. De uma calúnia
cxxxii. Que não é sério
cxxxiii. O princípio de Helvetius
cxxxiv. Cinquenta anos
cxxxv. Oblivion
cxxxvi Inutilidade
cxxxvii. A barretina
cxxxviii. A um crítico
cxxxix. De como não fui ministro d’Estado
cxl. Que explica o anterior
cxli. Os cães
cxlii. O pedido secreto
cxliii. Não vou
cxliv. Utilidade relativa
cxlv. Simples repetição
cxlvi. O programa
cxlvii. O desatino
cxlviii. O problema insolúvel
cxlix. Teoria do benefício
cl. Rotação e translação
cli. Filosofia dos epitáfios
clii. A moeda de Vespasiano
cliii. O alienista
cliv. Os navios do Pireu
clv. Reflexão cordial
clvi. Orgulho da servilidade
clvii. Fase brilhante
clviii. Dous encontros
clix. A semidemência
clx. Das negativas

Cronologia

Outras leituras

 

Trecho da obra Memórias póstumas de Brás Cubas

Ao leitor

Que Stendhal confessasse haver escrito um de seus livros para cem leitores, cousa é que admira e consterna.³ O que não admira, nem provavelmente consternará é se este outro livro não tiver os cem leitores de Stendhal, nem cinquenta, nem vinte, e quando muito, dez. Dez? Talvez cinco. Trata‑se, na verdade, de uma obra difusa, na qual eu, Brás Cubas, se adotei a forma livre de um Sterne, ou de um Xavier de Maistre, não sei se lhe meti algumas rabugens de pessimismo. Pode ser. Obra de finado. Escrevi‑a com a pena da galhofa e a tinta da melancolia, e não é difícil antever o que poderá sair desse conúbio. Acresce que a gente grave achará no livro umas aparências de puro romance, ao passo que a gente frívola não achará nele o seu romance usual; ei‑lo aí fica privado da estima dos graves e do amor dos frívolos, que são as duas colunas máximas da opinião.

Mas eu ainda espero angariar as simpatias da opinião, e o primeiro remédio é fugir a um prólogo explícito e longo. O melhor prólogo é o que contém menos cousas, ou o que as diz de um jeito obscuro e truncado. Conseguintemente, evito contar o processo extraordinário que empreguei na composição destas Memórias, trabalhadas cá no outro mundo. Seria curioso, mas nimiamente extenso, e aliás desnecessário ao entendimento da obra. A obra em si mesma é tudo: se te agradar, fino leitor, pago‑me da tarefa; se te não agradar, pago‑te com um piparote, e adeus.

Brás Cubas

 

Nota ³: No prefácio da segunda edição (1853) de sua obra De l’amour (1822), escrito em 1834, Stendhal (1783‑1842) diz ter escrito o livro para cem leitores.

 

I. Óbito do autor

Algum tempo hesitei se devia abrir estas memórias pelo princípio ou pelo fim, isto é, se poria em primeiro lugar o meu nascimento ou a minha morte. Suposto o uso vulgar seja começar pelo nascimento, duas considerações me levaram a adotar diferente método: a primeira é que eu não sou propriamente um autor defunto, mas um defunto autor, para quem a campa foi outro berço; a segunda é que o escrito ficaria assim mais galante e mais novo. Moisés, que também contou a sua morte, não a pôs no introito, mas no cabo: diferença radical entre este livro e o Pentateuco.

Dito isto, expirei às duas horas da tarde de uma sexta‑‑feira do mês de agosto de 1869, na minha bela chácara de Catumbi. Tinha uns sessenta e quatro anos, rijos e prósperos, era solteiro, possuía cerca de trezentos contos e fui acompanhado ao cemitério por onze amigos. Onze amigos! Verdade é que não houve cartas nem anúncios. Acresce que chovia — peneirava — uma chuvinha miúda, triste e constante, tão constante e tão triste, que levou um
daqueles fiéis da última hora a intercalar esta engenhosa ideia no discurso que proferiu à beira de minha cova:

— Vós, que o conhecestes, meus senhores, vós podeis dizer comigo que a natureza parece estar chorando a perda irreparável de um dos mais belos caracteres que têm honrado a humanidade. Este ar sombrio, estas gotas do céu, aquelas nuvens escuras que cobrem o azul como um crepe funéreo, tudo isso é a dor crua e má que lhe rói à natureza as mais íntimas entranhas; tudo isso é um sublime louvor ao nosso ilustre finado.

Bom e fiel amigo! Não, não me arrependo das vinte apólices que lhe deixei. E foi assim que cheguei à cláusula dos meus dias; foi assim que me encaminhei para o undiscovered country de Hamlet, sem as ânsias nem as dúvidas do moço príncipe, mas pausado e trôpego como quem se retira tarde do espetáculo. Tarde e aborrecido. Viram‑me ir umas nove ou dez pessoas, entre elas três senhoras, minha irmã Sabina, casada com o Cotrim, a filha — um lírio do vale — e… Tenham paciência! Daqui a pouco lhes direi quem era a terceira senhora. Contentem‑se de saber que essa anônima, ainda que não parenta, padeceu mais do que as parentas. É verdade, padeceu mais. Não digo que se carpisse, não digo que se deixasse rolar pelo
chão, convulsa. Nem o meu óbito era cousa altamente dramática… Um solteirão que expira aos sessenta e quatro anos não parece que reúna em si todos os elementos de uma tragédia. E dado que sim, o que menos convinha a essa anônima era aparentá‑lo. De pé, à cabeceira da cama, com os olhos estúpidos, a boca entreaberta, a triste senhora mal podia crer na minha extinção.

— Morto! morto! — dizia consigo.

E a imaginação dela, como as cegonhas que um ilustre viajante viu desferirem o voo desde o Ilisso às ribas africanas, sem embargo das ruínas e dos tempos — a imaginação dessa senhora também voou por sobre os destroços presentes até às ribas de uma África juvenil… Deixá‑la ir; lá iremos mais tarde; lá iremos quando eu me restituir aos primeiros anos. Agora, quero morrer tranquilamente, metodicamente, ouvindo os soluços das damas, as falas baixas dos homens, a chuva que tamborila nas folhas de tinhorão da chácara, e o som estrídulo de uma navalha que um amolador está afiando lá fora, à porta de um correeiro. Juro‑lhes que essa orquestra da morte foi muito menos triste do que podia parecer. De certo ponto em diante chegou a ser deliciosa. A vida estrebuchava‑me no peito, com uns ímpetos de vaga marinha, esvaía‑se‑me a consciência, eu descia à imobilidade física e moral, e o corpo fazia‑se‑me planta, e pedra, e lodo, e cousa nenhuma.

Morri de uma pneumonia; mas se lhe disser que foi menos a pneumonia, do que uma ideia grandiosa e útil, a causa da minha morte, é possível que o leitor me não creia, e todavia é verdade. Vou expor‑lhe sumariamente o caso. Julgue‑o por si mesmo.

 

Nota ⁴: O narrador alude ao ato iii, cena i da peça Hamlet, de William Shakespeare: “The undiscovered country, from whose bourn/ No traveller returns” [O país misterioso de cujas fronteiras nenhum viajante retorna].
Nota ⁵: As cegonhas do Ilisso figuram no livro Itinerário de Paris a Jerusalém (1811), de Chateaubriand. A viagem das cegonhas consta no primeiro capítulo, “Viagem à Grécia”, e também no canto xv de sua obra Os mártires. Na Grécia antiga, o Ilisso era um rio divinizado, na região da Ática, que atravessava a cidade de Atenas e desaguava no golfo Sarônico, ao sul do Pireu.

 

II. O emplasto

Com efeito, um dia de manhã, estando a passear na chácara, pendurou‑se‑me uma ideia no trapézio que eu tinha no cérebro. Uma vez pendurada, entrou a bracejar, a pernear, a fazer as mais arrojadas cabriolas de volatim, que é impossível crer. Eu deixei‑me estar a contemplá‑la. Súbito, deu um grande salto, estendeu os braços e as pernas, até tomar a forma de um X: decifra‑me ou devoro‑te.

Essa ideia era nada menos que a invenção de um medicamento sublime, um emplasto anti‑hipocondríaco, destinado a aliviar a nossa melancólica humanidade. Na petição de privilégio que então redigi, chamei a atenção do governo para esse resultado, verdadeiramente cristão. Todavia, não neguei aos amigos as vantagens pecuniárias que deviam resultar da distribuição de um produto de tamanhos e tão profundos efeitos. Agora, porém, que estou cá do outro lado da vida, posso confessar tudo: o que me influiu principalmente foi o gosto de ver impressas nos jornais, mostradores, folhetos, esquinas, e enfim nas caixinhas do remédio, estas três palavras: Emplasto Brás Cubas. Para que negá‑lo? Eu tinha a paixão do arruído, do cartaz, do foguete de lágrimas. Talvez os modestos me arguam esse defeito; fio, porém, que esse talento me hão de reconhecer os hábeis. Assim, a minha ideia trazia duas faces, como as medalhas, uma virada para o público, outra para mim. De um lado, filantropia e lucro; de outro lado, sede de nomeada. Digamos: — amor da glória.

Um tio meu, cônego de prebenda inteira, costumava dizer que o amor da glória temporal era a perdição das almas, que só devem cobiçar a glória eterna. Ao que retorquia outro tio, oficial de um dos antigos terços de infantaria, que o amor da glória era a cousa mais verdadeiramente humana que há no homem, e, conseguintemente, a sua mais genuína feição.

Decida o leitor entre o militar e o cônego; eu volto ao emplasto.

 

Resenha/Comentário sobre Memórias póstumas de Brás Cubas


Por Tatiana Feltrin. (24/05/15)

 

Drummond rejeitava Machado de Assis. Ele não era o único.


O pesquisador Hélio de Seixas Guimarães, da FFLCH-USP, lê trechos de obras de Drummond, Graciliano Ramos e Guimarães Rosa e comenta como os autores receberam a obra de Machado de Assis, romancista central na tradição literária brasileira. Canal Pesquisa Fapesp (25/11/19).

 

AUDIOLIVRO: “Memórias Póstumas de Brás Cubas”, de Machado de Assis


Canal ibamendes.

 

Além de Memórias póstumas de Brás Cubas, a Companhia das Letras e a Penguin editaram também outro clássico da literatura ocidental: Ilíada, de Homero.

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“A noite da espera (O lugar mais sombrio – Vol. 1)”, Milton Hatoum https://quarentena.org/indicacoes/a-noite-da-espera-o-lugar-mais-sombrio-vol-1-milton-hatoum/ https://quarentena.org/indicacoes/a-noite-da-espera-o-lugar-mais-sombrio-vol-1-milton-hatoum/#respond Tue, 14 Apr 2020 05:21:43 +0000 https://quarentena.org/?post_type=product&p=5225 O Lugar Mais Sombrio, o novo romance de Milton Hatoum retrata a formação sentimental, política e cultural de um grupo de jovens na Brasília dos anos 1960 e 1970.]]>

Apresentação

Nove anos após a publicação de Órfãos do Eldorado, Milton Hatoum retorna à forma da narrativa longa em uma série de três volumes na qual o drama familiar se entrelaça à história da ditadura militar para dar à luz um poderoso romance de formação. Nos anos 1960, Martim, um jovem paulista, muda-se para Brasília com o pai após a separação traumática deste e sua mãe. Na cidade recém-inaugurada, trava amizade com um variado grupo de adolescentes do qual fazem parte filhos de altos e médios funcionários da burocracia estatal, bem como moradores das cidades-satélites, espaço relegado aos verdadeiros pioneiros da capital federal, migrantes desfavorecidos.

Às descobertas culturais e amorosas de Martim contrapõe-se a dor da separação da mãe, de quem passa longos períodos sem notícias. Na figura materna ausente concentra-se a face sombria de sua juventude, perpassada pela violência dos anos de chumbo. Neste que é sem dúvida um dos melhores retratos literários de Brasília, Hatoum transita com a habilidade que lhe é própria entre as dimensões pessoal e social do drama e faz de uma ruptura familiar o reverso de um país cindido por um golpe.

A editora disponibiliza um trecho como degustação em pdf, mas você também pode lê-lo logo abaixo.

 

Trecho da obra

Inverno e silêncio. Nenhuma carta do Brasil.

Paris, dezembro, 1977

Cidade gelada, nem sempre silenciosa: algazarra de turistas na travessia de uma ponte sobre o Sena. Somos do mesmo país, andamos para margens opostas. Essas gargalhadas e vozes são verdadeiras?

Hoje, em Neuilly-sur-Seine, meu aluno francês me ofereceu café e quis conversar um pouco sobre o Brasil. O bate-papo, de início besta, aos poucos rondou um assunto mais cabeludo, que logo ficou grave; para ir da gravidade ao terror político bastaram duas xícaras de café e uns biscoitos. No fim, meu aluno, mudo, pagou os quarenta francos da aula e me deu dez de gorjeta. Foi o lucro desta tarde fria e cinzenta.

Embolsei os francos e caminhei pelo Bois de Boulogne: árvores sem folhas, uma fina camada de gelo no solo, canto de pássaros invisíveis. A quietude foi assaltada por lembranças de lugares e pessoas em tempos distintos: Lázaro e sua mãe no barraco de Ceilândia, a voz do Geólogo no campus da Universidade de Brasília, a aparição de uma mulher no quarto de um hotel em Goiânia, o embaixador Faisão recitando versos de um poeta norte-americano: “Apenas mais uma verdade, mais um/ elemento na imensa desordem de verdades…”.

Outro dia vi o rosto de Dinah, segui esse rosto e deparei com uma francesa, que se surpreendeu com o meu olhar; outros rostos brasileiros apareceram em museus, na entrada de um cinema em Denfert, nas feiras da cidade.

 

Peguei o metrô até Châtelet, toquei violão no subterrâneo abafado e me lembrei das lições de música da Cantora. Não ouvi a língua portuguesa na plataforma nem nos corredores, peguei as moedas na capa do violão e andei pelo Marais até o Royal Bar. Um conhaque. Abri meu caderno de anotações e esperei meus três amigos, brasileiros. Marcamos às sete da noite.

Pessoas encapotadas passam na calçada da Rue de Sévigné, vozes enchem o Royal Bar, lá fora um saltimbanco atravessou o ar gelado e pediu uma moeda a uma mulher.

Oito e quinze da noite. Damiano Acante, Julião e Anita furaram.

Nem tudo é suportável quando se está longe…

A memória ofusca a beleza desta cidade.

 

Meu senhorio é um casal angolano que fugiu da guerra. Durmo neste quartinho em forma de trapézio; o teto é inclinado, só posso ficar de pé quando me aproximo da mesinha encostada na parede da janela. Almoço por aqui mesmo, num bistrô da Rue de la Goutte-d’Or, ou do Boulevard de la Chapelle, a caminho do metrô; depois atravesso a cidade para dar aulas particulares, na hora do rush desço na estação
Châtelet, ganho uns trocados com a voz e o violão, e volto a Aubervilliers depois das dez da noite, quando os dois angolanos dormem. Ele é porteiro de um hotelzinho do bairro, e a mulher está desempregada. Conversam pouco comigo, sempre em português, e entre eles falam em quimbundo.

Hoje acordei assustado, levantei para beber água e bati a cabeça no teto baixo. Manhã escura, meu mau humor cresceu com a lembrança do sonho.

De noitinha, fui ver Julião e Anita num café do Boulevard Arago. Julião me deu uma caderneta de capa verde, manchada, folhas enrugadas. Li na primeira página um poema de Ox e tentei decifrar os garranchos das outras.

“Meus últimos dias no Brasil, Martim. A debandada geral, cara… Lúcifer solto na Pauliceia. Não quero guardar a porra desse diário. Se eu reler esses rabiscos, vou sentir mais saudade dos amigos, da escola de samba e da Vila Madalena. A saudade destrói e seca o coração.”

“Eu também fiz anotações”, disse Anita. “Acho que esqueci a caderneta em São Paulo, na casa do Ox. Eu tinha anotado a primeira noite com o Julião e outras coisas da nossa república na Vila Madalena.”

Quando Julião foi atender um cliente, Anita disse que ele estava desanimado com a vida em Paris. “Não sei se é o inverno ou a língua, Martim. Ele está aprendendo francês, mas ainda se atrapalha muito. Fala fazendo mímica, é o mímico deste bar. Os clientes se divertem quando ele gagueja em francês, faz mímica e diz baixinho: ‘Pardon, pardon’. Ganha uns trocados com o show, depois solta uns palavrões em português. No fim da noite, ele se lembra do Brasil e fica na fossa. Com tanta saudade assim, acho que vai adoecer.”

 

Rue de la Goutte‑d’Or, Paris,
2 de janeiro, 1978

“Você passou o Ano-Novo aqui, olhando a noite por essa janelinha?”, disse Damiano Acante.

Era o nosso primeiro encontro em Paris. Minha decisão de viajar para cá foi, em parte, influenciada por Damiano. Na nossa última conversa em São Paulo, ele me deu o número de um telefone parisiense e disse: “Você aluga um quartinho num bairro de imigrantes, Martim. Um teto provisório. Pode dar aulas de português e pagar o aluguel. No final de dezembro, quando eu chegar em Paris, arranjo um estúdio para você”.

Damiano ainda ficou uns dias em São Paulo, não sei qual foi o trajeto da viagem dele: as fronteiras por onde passou, as escalas até desembarcar em Paris. Um expatriado pode esquecer seu país em vários momentos do dia e da noite, ou até por um longo período. Mas o pensamento de
um exilado quase nunca abandona seu lugar de origem. E não apenas por sentir saudade, mas antes por saber que o caminho tortuoso e penoso do exílio é, às vezes, um caminho sem volta.

Ele mantinha a mesma expressão serena e misteriosa, a mesma voz sem alarde, só alterada quando dirigia os ensaios de uma peça. O rosto meio chupado estava ensombrecido por uma barba grisalha, que diminuía ainda mais os olhos pequenos. Não disse onde morava. Sentado no colchão, observou o teto inclinado da mansarda, depois olhou de relance os livros e cadernos na sacola de lona. Pegou um texto encadernado, deu uma folheada e perguntou: “Você guardou o Prometeu acorrentado? Será que vale a pena colecionar fracassos?”.

Em seguida se desculpou por não ter ido ao Royal Bar na semana passada: “Foi complicado deixar o Brasil, Martim. Complicado e arriscado”.

“Todos me deram bolo no Royal Bar”, eu disse.

“Todos, como?”

“Você e dois amigos de São Paulo: Julião e Anita. Trouxeram dinheiro de São Paulo e alugaram um estúdio na
Rue Daguerre.”

“Rue Daguerre é um lugar caro. Você pode alugar um estúdio num bairro mais barato, Martim. A proprietária é uma amiga francesa, uma companheira. O estúdio fica na Rue d’Aligre, a rua do mercado, ao lado da Place d’Aligre. O aluguel é uma pechincha: quatrocentos francos.”

Quatrocentos francos por mês: o valor de oito ou dez aulas de língua portuguesa. Pago sessenta por semana por um quarto em que mal posso ficar de pé.

“Vou dividir esse estúdio com alguém?”

“Não. É um estúdio pequeno, mas um pouco mais espaçoso que este canil. E tem um banheirinho.”

Colocou o texto de Prometeu na sacola:

“A embaixada de Cuba ajuda um pequeno grupo de exilados: o Círculo Latino-Americano de Resistência, Clar. Vamos imprimir um boletim de notícias e um tabloide. Você apenas nos ajuda a distribuir exemplares. De vez em quando um amigo brasileiro vai dormir no estúdio, mas por pouco tempo. Você tem medo de alguma coisa? O pior já passou, Martim. Sei o que você está sentindo. Tenho muitos contatos no Brasil, não desisti de procurar tua mãe.”

 

Última noite na Rue de la Goutte-d’Or, Paris, inverno, 1978

Minha mãe me esperava havia anos na casa de madeira de um sítio; perguntou por que eu tinha demorado tanto para encontrá-la.

Onde era esse sítio? Ipês floridos na paisagem ondulada, o céu e a luz do Planalto Central. Podia ser um sítio perto de Brasília, algum lugar no Distrito Federal ou em Goiás.

Queria ter perguntado: Quem demorou, mãe? Quem adiou nosso encontro?

Não disse nada no sonho, e fiquei remoendo meu silêncio.

Agora, acordado, é tarde demais.

Rue d’Aligre, Paris, março, 1978

Tirei da sacola a papelada de Brasília e São Paulo: cadernos, fotografias, cadernetas, folhas soltas, guardanapos com frases rabiscadas, cartas e diários de amigos, quase todos distantes; alguns perdidos, talvez para sempre.

Comecei a datilografar os manuscritos: anotações intermitentes, escritas aos solavancos: palavras ébrias num tempo salteado.

 

1.

Rue d’Aligre, Paris, março, 1978

Um artista, um pintor. Sabia apenas isso do homem que seduziu minha mãe. Em 22 de dezembro de 1967, ela saiu de casa e foi viver com o artista. Essa decisão inesperada, talvez intempestiva, me perturbou. Meu pai tinha certeza de que minha mãe voltaria, mas ela me disse que não o amava mais, e que nós dois e o artista moraríamos juntos.

Uma tarde meu pai me flagrou conversando com Lina, pegou o telefone e disse que era tudo uma vadiagem. De repente o rosto de Rodolfo empalideceu. “Como isso pôde acontecer? Onde você está morando? Você vai desgraçar minha vida? E o nosso filho?”

Sem me olhar, fez um gesto com a mão: que eu saísse do apartamento.

Do lado de fora, escutei a voz repetir: “Nunca mais, nunca mais…”.

Rodolfo não me contou o que Lina lhe havia dito, e essa conversa permanece secreta.

Morávamos num pequeno apartamento na rua Tutoia, minha mãe dava aulas particulares de francês no Paraíso, na Bela Vista, nos Jardins e na Vila Mariana; não queria depender do meu pai, um engenheiro civil, formado na Escola Politécnica.

Passei o Natal de 67 com Lina e tio Dácio no chalé dos meus avós maternos, em Santos. Minha avó Ondina e sua empregada Delinha prepararam peixe ao forno e um suflê de camarões e frutos do mar; Ondina se dirigia apenas ao marido, que sempre foi mais maleável que ela. Para meu avô, um temporal na Baixada Santista, uma greve dos portuários, uma criança perdida no mangue, um louco que aparecia nu no canal de José Menino, tudo estava nas mãos do destino. E foi ao destino que ele atribuiu a separação dos meus pais. Ondina não lhe deu atenção: falou da fraqueza moral e sentimental da minha mãe, das fantasias que nos castigavam. Eu ia elogiar o suflê, o peixe e os pastéis de nata, mas Lina se antecipou. “Não é fraqueza nem fantasia”, ela disse, amassando um guardanapo. “Não posso mais viver com Rodolfo… e nem quero falar disso na frente do meu filho.”

O fim da noite natalina foi fúnebre: Ondina saiu da mesa e avisou que não ia festejar o Ano-Novo. Escutamos passos no corredor, Delinha seguiu esses passos e as duas mulheres desapareceram. Meu avô, bem-humorado, sugeriu um passeio até o porto.

“Nessa escuridão?”

“Lá fora está menos escuro que nesta sala, Dácio. Parece que apagaram tudo aqui dentro. Martim vem comigo?”

Andamos pelas ruas do Macuco até o canal. As catraias estavam encostadas nas margens, a passagem do canal para o estuário formava um meio círculo escuro, parecia a entrada de um túnel tenebroso. Os vagões de carga estavam  inertes na linha do trem; mais longe, os guindastes, empilhadeiras e armazéns eram formas quase indistintas. A ausência de marinheiros e de estivadores e a iluminação fraca no canal e no cais adensavam o silêncio no porto do Macuco, como se o mar tivesse secado na noite natalina. Contornamos a outra margem e, na travessia da pequena ponte sobre o canal, vimos dois corpos deitados numa catraia que oscilava na margem.

“Ondina não se conforma com a separação dos teus pais”, disse meu avô. “Nunca vai aceitar. Ela não devia se intrometer nessa história, mas a gente pode mudar a natureza de uma pessoa? Sei que Lina gosta de outro homem, Martim. Mas não é só isso. Você ouviu tua mãe dizer que
ela não pode mais viver com o teu pai. O destino dela está nessas palavras.”

Quando perguntei por quê, ele me abraçou, antes de dizer: “É difícil explicar. Um dia você vai descobrir os motivos”.

No chalé, todos dormiam; deitei ao lado da minha mãe e bem cedinho regressamos a São Paulo. Fiquei na rua Tutoia, e tio Dácio foi embora com minha mãe. Nesse dia, comecei a arrumar minhas coisas para morar com ela e o artista. Meu pai aproveitou o feriado para encaixotar os livros de engenharia e fazer a mala.

Ele ia se mudar para o nosso bairro ou para longe do Paraíso?

O homem estava ressentido demais para dizer uma palavra; era raro meu pai falar diretamente comigo: as palavras dirigidas a mim eram ditas a minha mãe, e agora não havia espelho nem anteparo às palavras paternas. Foi nesse quase mutismo que vivi a última semana de dezembro.
Na manhã do dia 31, minha mãe telefonou: que eu fosse ao apartamento do tio Dácio, nós íamos almoçar no centro.

Ele morava num quarto e sala na avenida São Luís; o quarto era um laboratório fotográfico, tio Dácio dormia na
saleta quase vazia, os livros arrumados numa estante de aço; nas paredes, fotografias em preto e branco de rostos de imigrantes portugueses, espanhóis, italianos, e o retrato de uma família num cortiço do Bexiga. Lina tentava vender essas fotos a suas alunas e aos clientes da Livraria Francesa; ela o visitava à revelia do meu pai, que reprovava o trabalho do cunhado:

“Largou a engenharia para ser fotógrafo marginal. Cedo ou tarde vai puxar carroça no centro de São Paulo e dormir num cortiço.”

Na última visita do tio Dácio à rua Tutoia, Rodolfo interrompeu uma conversa sobre poetas e fotógrafos, e disse que o progresso e a civilização eram um triunfo da engenharia. Tio Dácio negou essa frase com um sorriso irônico, depois disse que vários engenheiros, médicos e cientistas foram também grandes artistas. “Nossa turma da Politécnica estudou os cálculos do engenheiro e poeta Joaquim Cardozo. Você se interessou pela estrutura da Igreja da Pampulha, Rodolfo. Estudou a estrutura complicada da Catedral de Brasília. Niemeyer projetava e Cardozo fazia os cálculos estruturais. Os dois são artistas.”

Tio Dácio e meu pai tinham sido colegas na Politécnica; quando se diplomaram, meus avós e Lina subiram a serra para participar da festa de formatura, onde Rodolfo conheceu minha mãe, uma moça de dezenove anos que acabara o colegial e queria estudar literatura na usp, mas
Ondina a proibiu de morar na capital.

Como teria sido essa festa de engenheiros recém-formados, o primeiro encontro de Rodolfo com Lina, a ex-aluna do Stella Maris bailando com o jovem engenheiro, os dois vigiados por Ondina? Minha mãe subiu a Serra do Mar para casar e sair da casa dos pais, pensei, e eu sou filho desse baile de formatura.

 

Lá de baixo vem a algaravia do Marché d’Aligre, e no fim da feira surge na memória o resto da conversa de Dácio com meu pai.

“Poucos brasileiros conhecem o engenheiro-poeta Joaquim Cardozo, mas sem ele não existiria a Catedral, o Palácio do Congresso e outros palácios de Brasília.”

“Você jogou no lixo a carreira de politécnico, Dácio. Tira fotos de operários, imigrantes e biscateiros. Quem vai comprar essas porcarias?”

Dácio mirou o rosto do meu pai: o olhar parecia selar uma ruptura para toda a vida; e, quando Rodolfo foi embora, os dois irmãos ficaram sussurrando grandes segredos na sala. Talvez conversassem assim naquela tarde de 31 de dezembro, antes de eu entrar no apartamento da São Luís. Eu disse que estava pronto para sair da Tutoia, Rodolfo também se mudaria, eu não sabia para onde. Dácio e Lina se entreolharam: parecia que todos os rostos imigrantes nas paredes me examinavam com um olhar sofrido, mas não desorientado. Eu é que fiquei desnorteado quando Dácio afirmou à queima-roupa: “Você vai morar com Rodolfo em Brasília, Martim”.

O olhar de Lina devolvia minha apreensão.

“Brasília?”, repeti. “Com meu pai em Brasília?”

“Ele conseguiu um bom emprego numa repartição da capital. Quer viver longe da tua mãe. É mais fácil esquecer.”
“Fui ao Colégio Marista e conversei com o professor Verona”, disse Lina. “Ele já entregou para o teu pai os documentos da transferência e uma carta para o diretor do teu colégio em Brasília.”

Eu não podia morar com meus avós em Santos?

Minha mãe disse que Ondina era rígida demais, não admitia a separação, eu sofreria num ambiente hostil e seria pior para mim. Eu não podia viver com ela e seu companheiro por um motivo: dinheiro.

“E é também por isso que você não pode morar comigo”, acrescentou tio Dácio.

Os rostos imigrantes sumiram da parede, meu olhar um pouco turvo via traição no rosto da minha mãe. A falta de dinheiro era uma desculpa ou uma razão verdadeira? Essa pergunta não me veio à mente no último dia de 1967, quando as palavras se embrulhavam na minha cabeça, não
saíam da boca, e continuaram atropeladas no restaurante da praça Dom José Gaspar, onde eu almoçara outras vezes com Lina e meu tio. Ainda vejo as árvores altas e frondosas da praça, a Biblioteca Mário de Andrade e, ali perto, a Livraria Francesa, aonde Lina me levava nas manhãs de sábado em que meu pai ia ver um edifício em construção.

Eu e Lina mal tocamos na comida, nossas mãos entrelaçadas suavam debaixo da mesa, como se o medo e a angústia, ausentes nos almoços do passado, agora me ameaçassem. O amante da minha mãe chegou no fim do almoço: mais alto do que eu, moreno e magro, aparência desleixada; o rosto anguloso, expressivo e talvez astuto buscava nos meus olhos uma intimidade que eu recusava. Não toquei a mão estendida para mim, Lina me advertiu com o olhar, e eu me perguntava onde e como ela havia conhecido esse sujeito que nunca seria meu amigo. Dácio e ele ocuparam outra mesa, a voz do artista me irritava, tudo nele parecia insuportável, sentia a mão suada de Lina, e o meu sofrimento aumentava. O artista não demorou no restaurante: piscou para minha mãe e deu um adeus com um gesto breve e apressado. Lina largou minha mão e cobriu o rosto, tio Dácio nos acompanhou até a calçada e se despediu de mim. Pegamos um táxi para o nosso bairro, descemos perto da praça Santíssimo Sacramento e entramos na padaria Flor do Paraíso.

“Teu pai decidiu morar em Brasília”, ela disse, segurando e apertando minhas mãos. “Eu e o meu companheiro… nós nos apaixonamos, Martim. Você vai entender. Escreve para o endereço do teu tio. Brasília é uma cidade diferente, mas você vai gostar de lá.”

Quando ela ia me ver?

“Daqui a poucos meses, filho.”

Escutei uma voz meiga e um choro sufocado, depois senti o corpo da minha mãe: o abraço mais demorado e triste da minha vida de dezesseis anos.

Resenha/Comentário


Resenha do canal do YouTube Livrada! (04/02/18).

 

Trecho lido pelo próprio autor


Canal da Editora Companhia das Letras.

 

Entrevista com o autor


Entrevista concedida ao canal História da Ditadura.

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