Apresentação de Sentimento do Mundo
Publicado em 1940, Sentimento do mundo permanece, tantos anos depois, ainda um dos livros mais celebrados da carreira de Carlos Drummond de Andrade. Não é para menos: o livro enfileira poemas clássicos como “Sentimento do mundo”, “Confidência do Itabirano”, “Poema da necessidade” – é possível que versos do livro inteiro tenham sido impressos no inconsciente literário brasileiro, tamanha é sua repercussão até hoje.
Já estabelecido no Rio e observando o mundo (e a si mesmo) de uma perspectiva urbana, o Drummond de Sentimento do mundo oscila entre diversos polos: cidade x interior, atualidade x memórias, eu x mundo. Perfeita depuração dos livros anteriores, este é um verdadeiro marco – e como se isso não bastasse, é o livro que prepara o terreno para nada menos do que A rosa do povo (1945). Por isso a ênfase, ao longo de todo o livro, na vida presente.
A editora disponibiliza os cinco primeiros poemas como degustação em pdf, mas você também poderá lê-los abaixo ou na aba “Trecho da Obra”.
Índice / Sumário do livro / Lista dos poemas
- “Sentimento do Mundo”
- “Confidência do Itabirano”
- “Poema da Necessidade”
- “Canção da Moça-Fantasma de Belo Horizonte”
- “Tristeza do Império”
- “O Operário no Mar”
- “Menino Chorando na Noite”
- “Morro da Babilônia”
- “Congresso Internacional do Medo”
- “Os Mortos de Sobrecasaca”
- “Brinde no Juízo Final”
- “Privilégio do Mar”
- “Inocentes do Leblon”
- “Canção de Berço”
- “Indecisão do Méier”
- “Bolero de Ravel”
- “La Possession du Monde”
- “Ode no Cinquentenário do Poeta Brasileiro”
- “Os Ombros Suportam o Mundo”
- “Mãos Dadas”
- “Dentaduras Duplas”
- “Revelação do Subúrbio”
- “A Noite Dissolve os Homens”
- “Madrigal Lúgubre”
- “Lembrança do Mundo Antigo”
- “Elegia 1938”
- “Mundo Grande”
- “Noturno à Janela do Apartamento”
Posfácio
“Desejo de transformação”. por Murilo Marcondes de Moura.
Trecho da obra Sentimento do Mundo
1. Sentimento do mundo
Tenho apenas duas mãos
e o sentimento do mundo,
mas estou cheio de escravos,
minhas lembranças escorrem
e o corpo transige
na confluência do amor.
Quando me levantar, o céu
estará morto e saqueado,
eu mesmo estarei morto,
morto meu desejo, morto
o pântano sem acordes.
Os camaradas não disseram
que havia uma guerra
e era necessário
trazer fogo e alimento.
Sinto-me disperso,
anterior a fronteiras,
humildemente vos peço
que me perdoeis.
Quando os corpos passarem,
eu ficarei sozinho
desfiando a recordação
do sineiro, da viúva e do microscopista
que habitavam a barraca
e não foram encontrados
ao amanhecer
esse amanhecer
mais noite que a noite
2. Confidência do itabirano
Alguns anos vivi em Itabira.
Principalmente nasci em Itabira.
Por isso sou triste, orgulhoso: de ferro.
Noventa por cento de ferro nas calçadas.
Oitenta por cento de ferro nas almas.
E esse alheamento do que na vida é porosidade e comunicação.
A vontade de amar, que me paralisa o trabalho,
vem de Itabira, de suas noites brancas, sem mulheres e sem horizontes.
E o hábito de sofrer, que tanto me diverte,
é doce herança itabirana.
De Itabira trouxe prendas diversas que ora te ofereço:
esta pedra de ferro, futuro aço do Brasil;
este São Benedito do velho santeiro Alfredo Duval;
este couro de anta, estendido no sofá da sala de visitas;
este orgulho, esta cabeça baixa…
Tive ouro, tive gado, tive fazendas.
Hoje sou funcionário público.
Itabira é apenas uma fotografia na parede.
Mas como dói!
3. Poema da necessidade
É preciso casar João,
é preciso suportar Antônio,
é preciso odiar Melquíades,
é preciso substituir nós todos.
É preciso salvar o país,
é preciso crer em Deus,
é preciso pagar as dívidas,
é preciso comprar um rádio,
é preciso esquecer fulana.
É preciso estudar volapuque,
é preciso estar sempre bêbedo,
é preciso ler Baudelaire,
é preciso colher as flores
de que rezam velhos autores.
É preciso viver com os homens,
é preciso não assassiná-los,
é preciso ter mãos pálidas
e anunciar o FIM DO MUNDO.
4. Canção da moça-fantasma de belo horizonte
Eu sou a Moça-Fantasma
que espera na Rua do Chumbo
o carro da madrugada.
Eu sou branca e longa e fria,
a minha carne é um suspiro
na madrugada da serra.
Eu sou a Moça-Fantasma.
O meu nome era Maria,
Maria-Que-Morreu-Antes.
Sou a vossa namorada
que morreu de apendicite,
no desastre de automóvel
ou suicidou-se na praia
e seus cabelos ficaram
longos na vossa lembrança.
Eu nunca fui deste mundo:
Se beijava, minha boca
dizia de outros planetas
em que os amantes se queimam
num fogo casto e se tornam
estrelas, sem ironia.
Morri sem ter tido tempo
de ser vossa, como as outras.
Não me conformo com isso,
e quando as polícias dormem
em mim e fora de mim,
meu espectro itinerante
desce a Serra do Curral,
vai olhando as casas novas,
ronda as hortas amorosas
(Rua Cláudio Manuel da Costa),
para no Abrigo Ceará,
não há abrigo. Um perfume
que não conheço me invade:
é o cheiro do vosso sono
quente, doce, enrodilhado
nos braços das espanholas…
Oh! deixai-me dormir convosco.
E vai, como não encontro
nenhum dos meus namorados,
que as francesas conquistaram,
e que beberam todo o uísque
existente no Brasil
(agora dormem embriagados),
espreito os carros que passam
com choferes que não suspeitam
de minha brancura e fogem.
Os tímidos guardas-civis,
coitados! um quis me prender.
Abri-lhe os braços… Incrédulo,
me apalpou. Não tinha carne
e por cima do vestido
e por baixo do vestido
era a mesma ausência branca,
um só desespero branco…
Podeis ver: o que era corpo
foi comido pelo gato.
As moças que ainda estão vivas
(hão de morrer, ficai certos)
têm medo que eu apareça
e lhes puxe a perna… Engano.
Eu fui moça, serei moça
deserta, per omnia saecula.
Não quero saber de moças.
Mas os moços me perturbam.
Não sei como libertar-me.
Se o fantasma não sofresse,
se eles ainda me gostassem
e o espiritismo consentisse,
mas eu sei que é proibido,
vós sois carne, eu sou vapor.
Um vapor que se dissolve
quando o sol rompe na Serra.
Agora estou consolada,
disse tudo que queria,
subirei àquela nuvem,
serei lâmina gelada,
cintilarei sobre os homens.
Meu reflexo na piscina
da Avenida Paraúna
(estrelas não se compreendem),
ninguém o compreenderá.
5. Tristeza do império
Os conselheiros angustiados
ante o colo ebúrneo
das donzelas opulentas
que ao piano abemolavam
“bus-co a cam-pi-na se-re-na
pa-ra li-vre sus-pi-rar”
esqueciam a guerra do Paraguai,
o enfado bolorento de São Cristóvão,
a dor cada vez mais forte dos negros
e sorvendo mecânicos
uma pitada de rapé
sonhavam a futura libertação dos instintos
e ninhos de amor a serem instalados nos arranha-céus de Copacabana, com rádio e telefone automático.
[FUVEST | UNICAMP #6] Sentimento do Mundo (Carlos Drummond de Andrade) + áudio Sentimento do Mundo
Canal do YouTube de tatianagfeltrin.
Maria Bethânia, Arnaldo Antunes e José Miguel Wisnik sobre Carlos Drummond de Andrade
Programa produzido pel o Canal Arte1.
Poemas de Carlos Drummond de Andrade declamados por outras pessoas
Canal do YouTube Caio T.
Vida e obra de Carlos Drummond de Andrade através de entrevistas
Programa produzido pela TV Cultura.
Você pode se interessar também pelos seguintes livros de Drummond:
“70 Historinhas”, de Carlos Drummond de Andrade
“Caminhos de João Brandão”, de Carlos Drummond de Andrade
“Os dias lindos“, de Carlos Drummond de Andrade
“Fala, Amendoeira“, de Carlos Drummond de Andrade
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