Introdução a “O Vilarejo”, de Raphael Montes
“O Vilarejo”, obra do aclamado autor brasileiro Raphael Montes, transporta os leitores para um cenário isolado e sombrio, onde o suspense e o terror se entrelaçam com a natureza humana. Através de sete histórias interconectadas, Montes explora as profundezas dos pecados capitais, tecendo uma narrativa que desafia a percepção de moralidade e justiça. Este livro não é apenas uma coleção de contos; é um labirinto onde cada página revela um pouco mais sobre os mistérios de um vilarejo perdido no tempo e espaço.
Raphael Montes constrói, com maestria, um universo onde o medo e a curiosidade caminham lado a lado. Cada história, inspirada em um pecado capital, reflete não apenas os demônios internos dos personagens, mas também os desafios e dilemas enfrentados pela humanidade ao longo da história. “O Vilarejo” convida o leitor a mergulhar em suas páginas, prometendo uma experiência única, onde a tensão é palpável do início ao fim.
A relevância de “O Vilarejo” transcende o gênero do terror e suspense, posicionando-se como um estudo profundo sobre o ser humano e suas falhas. Raphael Montes, com sua narrativa envolvente e personagens ricamente construídos, oferece uma obra que é ao mesmo tempo perturbadora e cativante. A leitura deste livro é uma jornada pelo desconhecido, um convite para explorar os cantos mais escuros da alma humana.
Quem é Raphael Montes?
Raphael Montes é um dos nomes mais promissores da literatura brasileira contemporânea, especialmente reconhecido por revitalizar o gênero do suspense e terror no país. Com uma habilidade notável para criar tramas cheias de reviravoltas e personagens complexos, Montes conquistou leitores e crítica. Suas obras são marcadas por um olhar crítico sobre a sociedade e uma capacidade única de mergulhar nos abismos da psique humana. “O Vilarejo” é mais uma prova de seu talento em contar histórias que ficam gravadas na memória.
Explorando “O Vilarejo”
“O Vilarejo” apresenta-se como uma coletânea de sete contos interligados, cada um explorando um dos pecados capitais através de personagens e situações que refletem as sombras da alma humana. A configuração em um vilarejo isolado e assolado por mistérios e tragédias serve de palco para a manifestação desses pecados de maneiras surpreendentes e, por vezes, aterrorizantes. Montes utiliza essa estrutura narrativa para tecer uma tapeçaria rica em simbolismo e metáforas, desafiando o leitor a desvendar os segredos escondidos nas entrelinhas de cada história.
Sinopse de O Vilarejo, de Raphael Montes
Em 1589, o padre e demonologista Peter Binsfeld fez a ligação de cada um dos pecados capitais a um demônio, supostamente responsável por invocar o mal nas pessoas. É a partir daí que Raphael Montes cria sete histórias situadas em um vilarejo isolado, apresentando a lenta degradação dos moradores do lugar, e pouco a pouco o próprio vilarejo vai sendo dizimado, maculado pela neve e pela fome. Assim, nasce O Vilarejo.
As histórias podem ser lidas em qualquer ordem, sem prejuízo de sua compreensão, mas se relacionam de maneira complexa, de modo que ao término da leitura as narrativas convergem para uma única e surpreendente conclusão.
Trecho destaque da obra O Vilarejo, de Raphael Montes
Neste marcante trecho de “O Vilarejo“, Raphael Montes nos leva ao coração da luta pela sobrevivência em condições extremas. Através da história de Felika e sua família, enfrentando a fome e o frio em um vilarejo isolado, Montes explora a resiliência humana diante da adversidade. A decisão de Felika de esconder alimentos para salvar sua família, enquanto o marido, Anatole, sai em busca de provisões, retrata vividamente a tensão e o desespero vividos pelos personagens. Este trecho não apenas avança a narrativa, mas também serve como uma janela para os temas mais profundos do livro: a fragilidade da sociedade e a luta incessante pela sobrevivência. Montes habilmente entrelaça o suspense e a humanidade, deixando os leitores contemplativos sobre até onde iriam para proteger seus entes queridos.
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BANQUETE PARA ANATOLE
Felika manda que as crianças comam depressa, antes que alguém nos arredores sinta o cheiro da comida. Depois de tanto tempo sem alimento, a família vizinha pode estar com o olfato aguçado e perceber que, ao contrário de todos, eles ainda têm o que comer. As casas no vilarejo são perigosamente próximas.
Ela se julga esperta. Enterrou entre a neve e a terra todo o alimento, de modo que nada foi apreendido quando os guardas passaram semanas atrás fazendo a coleta. Escolheu com cuidado o local do esconderijo — um espaço de meio metro quadrado atrás da fossa do terreno — e administra a guarnição restante para que não morram de fome até Anatole voltar. Vez ou outra afasta a cortina da janela, na esperança de ver o marido se aproximando da casa, com um ou dois coelhos na maleta para alimentar os três filhos que ficaram para trás.
— Vou buscar comida. Se permanecermos aqui, vamos morrer de fome ou de frio como os outros — disse Anatole, enquanto se vestia para enfrentar a neve. Partiria a pé, pela f loresta. — Eu volto.
Tantos dias passados e o marido ainda não voltou. Ela não acredita que ele tenha fugido e abandonado a família. Tampouco que tenha morrido. Anatole é um homem forte, corajoso. Aparecerá a qualquer momento. Cabe a ela mantê-los vivos enquanto isso. As crianças comem de dois em dois dias. Felika, acostumada ao protesto da barriga, de quatro em quatro. Por seus cálculos, os mantimentos do esconderijo duram mais cinco semanas.
O velho estava certo. O vilarejo vem sendo dizimado dia após dia. O luto sentou-se à mesa. Ninguém chora os mortos. Não podem desperdiçar energia lamentando a partida dos que não suportaram o frio e a fome. Há duas semanas, Irina, a vizinha da direita, gritou durante toda a madrugada a morte de seu bebê. No dia seguinte, estava morta. Foi burra. Felika não é burra e não se permite sentir pena de ninguém.
No passado, a vizinhança era diferente. Os moradores jantavam juntos, riam, contavam histórias entre os goles de vodca. Agora não mais. Se souberem que Felika esconde restos de raízes e brotos, além de uns ossos de rato para dar sabor de carne ao caldo, tomam tudo de sua família. Vão exigir dividir entre todos, como se
ela fosse responsável pela vida deles.
— Comam, comam logo — sussurra mais uma vez para os filhos.
As crianças não querem comer. O caldo está ralo, com um tom avermelhado. Felika prefere não brigar. Se brigar, elas vão chorar e perder energia. Melhor deixar que comam quando tiverem vontade.
Felika bebe o caldo em goladas e esconde a cumbuca atrás da lareira. Acostumada ao silêncio, assusta-se ao ouvir passadas na neve. Com as forças que lhe restam, corre para a janela, abre uma fresta na cortina. Busca a silhueta de alguém na brancura. Não há nada. Pensa que está tendo alucinações. Os passos se repetem e, por um segundo, ela pressente que Anatole finalmente voltou. Enche-se de alegria.
Sabe, entretanto, que não pode ser descuidada: os saques às casas do vilarejo têm sido frequentes. Na mesa da cozinha, pega a faca usada para fatiar a carne. Aproxima-se da porta, ouvidos aguçados, e espera que cheguem mais perto.
— Todos para a cama agora. Vamos deitar — diz para as crianças, sem impor a voz.
Um sol tímido desponta no céu, mas ela não pode deixar que as crianças brinquem lá fora. Os vizinhos irão vê-las bem-dispostas e começarão a se perguntar o que Felika faz para mantê-las vivas por tanto tempo. Exaustas, as crianças não discutem com a mãe: continuam à mesa, as mãozinhas nos talheres imundos.
A batida na porta vem seca e breve. Felika abre novamente a cortina. Reconhece o perfil ressequido da sra. Helga: usa um vestido
pesado de cores escuras, uma manta grossa envolta no pescoço esquelético e traz na mão direita uma pesada sacola de pano. A mão
esquerda se esconde no bolso do vestido.
Felika não vê a sra. Helga há mais de onze meses. Pensava que a velha já tinha morrido. Não podia supor que uma cega fosse sobreviver naquele frio glacial por tanto tempo.
— Que é? — murmura, sem girar o ferrolho.
— Preciso falar com você, criança — diz a sra. Helga, a voz
rouca.
Felika não responde. Melhor esperar que a velha vá embora.
— Preciso falar com você — repete. — Coisas estranhas estão
acontecendo.
A fome desproveu Felika de qualquer curiosidade sobre a vida alheia. Há tempos não conversa com ninguém do vilarejo e pretende continuar assim até que Anatole volte.
— Não vou abrir a porta — diz.
— Eu não estou com os guardas. As coletas cessaram há mais de três luas. Não precisa ter medo, criança.
O murmúrio da sra. Helga é doce e sedutor. Tão gostoso escutar uma voz diferente…
— Não acredito em você, velha — diz Felika. — Vá embora.
— As estradas estão todas bloqueadas pela neve. É impossível entrar ou sair do vilarejo sem ser morto pelo frio. Por favor, preciso
que me ajude. Coisas estranhas estão acontecendo.
É a segunda vez que a sra. Helga diz aquilo. O que ela pretende? Como se Felika tivesse lhe feito alguma pergunta, a mulher
continua:
— Astor está morto. Alguém o matou.
Astor é o cão-guia da sra. Helga, sua única companhia desde que o coronel Dimitri morreu na guerra. Anos atrás, era Astor quem anunciava o amanhecer ao vilarejo com seu latido de husky. Nos últimos tempos, Astor havia se calado, mas Felika não estranhou. Supôs que o cachorro tivesse morrido com a dona.
— Alguém matou Astor — repete a sra. Helga. — Veja, criança.
Pela janela, encara Felika com os olhos vazios, um negrume aterrador no lugar onde deveriam estar os glóbulos oculares. Abre a sacola de pano. Estica o braço, revelando o crânio do cachorro, fiapos de pelo presos em pontos de sangue coagulado. Moscas-da-neve brincam no esqueleto do cão.
— Tiraram toda a carne dele. Só sobrou isto — diz. Uma lágrima escorre pelo rosto ossudo.
A cena enoja Felika. Ela fecha um pouco a cortina para que as crianças não vejam o que se passa.
— Preciso saber quem matou meu Astor — diz a sra. Helga.
— Não sei, velha. Eu não fiz nada.
Felika não tem interesse neste assunto.
— Mas, criança, quem pode ter feito isto?
— Já lhe disse que não sei. Nem lembro quando saí de casa pela última vez. Tente com Ivan, o ferreiro. Ele sempre sabe de tudo.
— Já bati na porta dele. Nem atendeu. Tentei em outras casas. Jekaterina, Latasha, as irmãs Vália e Vonda. Ninguém responde. Nem mesmo Krieger, o aleijado, que nunca sai de casa… O vilarejo está vazio, Felika. Todos foram embora.
— Não vou abrir a porta.
— Por favor, criança. Tenho me sentido tão sozinha… Me deixe entrar.
Felika olha de novo para o braço esquerdo da sra. Helga e se arrepia. Sem dúvida, a velha cega esconde algo. Um revólver ou até mesmo uma faca. Não seria estúpida de expor sua família com tanta facilidade.
— Não vou abrir.
— Precisava conversar com alguém…
— Já conversamos. Agora vá e trate de se manter viva.
A sra. Helga exibe um sorriso triste, com as gengivas escurecidas, sem dentes.
— Nós vamos todos morrer, Felika. Cedo ou tarde, a fome ou o frio vai nos matar — diz. — Brigd partiu há uma semana. Morreu dormindo. Os ossos congelados.
A sra. Brigd é irmã da sra. Helga e mora na casa ao lado. Felika pensa que deveria expressar suas condolências, mas não quer fazer muito esforço.
— Então, vá embora antes que morra também, velha. Quando Anatole voltar, faço uma visita.
Felika fecha a cortina. Escuta a sra. Helga se afastar até que o silêncio sepulcral engole o vilarejo outra vez. Volta-se para os filhos, que, ainda sentados, parecem ter prestado atenção a toda a conversa. O caçula Rurik está nitidamente assustado, os olhinhos verdes girando perdidos sobre o prato. Para acalmá-los, Felika decide contar-lhes uma história, a jornada de um guerreiro que luta contra monstros para defender a família. Tenta
imaginar detalhes pitorescos que preencham a aventura, mas uma dor de cabeça mórbida a impede de realizar longos mergulhos criativos.
Entre fadas e dragões, Felika ouve nova batida à porta. Não pode acreditar que a impertinente sra. Helga voltou. Caminha devagar, hesita. Ao puxar as cortinas, mal se contém: Anatole! Gargalha, louca de felicidade. Abre a porta em um rompante e lhe entrega um beijo no rosto. Anatole também sorri. Mostra a maleta que traz consigo e Felika vê os coelhos e ratos que o marido caçou. Não passarão fome!
— Você está ótima, querida! — diz o marido, enquanto aperta suas bochechas. Espanta-se que a esposa esteja tão sadia e corada.
— Tenho dado meu jeito — gaba-se Felika.
— Parece até um tanto mais… gorda!
— Ora, não seja bobo, Anatole!
— Onde estão as crianças?
— Na mesa, jantando. Vamos comemorar! — exalta-se. Estala outro beijo na bochecha do marido. Caminham de braços dados.
Ao olhar para a sala, Anatole tropeça. Sente o corpo tontear e precisa se apoiar na poltrona para não cair no chão. Vomita a pouca comida que guarda no estômago. Olha para o rosto da mulher, mas ela continua a sorrir.
Espalhados pelo pequeno cômodo, Anatole reconhece os corpos de vários moradores do vilarejo. No sofá, sem a cabeça, está Krieger, o aleijado. Ao lado, Ivan, o ferreiro, tem uma faca rústica cravada no peito. Mais perto da lareira, as pernas e as cabeças de Vália e de Latasha, enfiadas em espetos compridos, esperam o momento de serem assadas.
Anatole corre para a cozinha. Os corpos dos três filhos jazem desmembrados na mesa. Um véu rubro escorre pelos pratos e pelas cadeiras. Nacos de braços e pernas infantis saem da travessa fumegante pousada na toalha de mesa com motivos florais. Num prato ao centro, partes do pequeno Rurik mergulham num caldo avermelhado.
— O que você fez?
Felika acaricia a cabeça da jovem Maisha, espetada por um garfo de quatro dentes.
— Viram, crianças? O papai trouxe comida. Não vamos mais passar fome — diz. Rói um dedinho tostado que restou em seu prato. — Ora, querido, venha dar um beijo nos seus filhos. Hoje é um dia especial… Vou preparar um banquete para o jantar!
Análise do Trecho e Técnicas Literárias
A análise do trecho destacado de “O Vilarejo” nos permite apreciar as técnicas literárias de Raphael Montes. O autor utiliza uma narrativa envolvente para explorar temas complexos como a sobrevivência, a moralidade e a natureza humana diante de adversidades extremas. Através de descrições detalhadas e diálogos carregados de emoção, Montes constrói um cenário onde o leitor pode sentir a tensão e o desespero dos personagens. Este trecho exemplifica como “O Vilarejo” vai além do terror, oferecendo uma reflexão sobre as escolhas humanas em situações limite.
A Importância Temática de “O Vilarejo”
A relevância temática de “O Vilarejo” está na sua capacidade de tecer uma narrativa que reflete sobre a condição humana através do prisma dos sete pecados capitais. Raphael Montes cria um espelho da sociedade no microcosmo do vilarejo, permitindo uma análise profunda sobre como o isolamento e a adversidade podem amplificar tanto a virtude quanto a vileza. Esta obra desafia os leitores a refletir sobre questões morais e éticas, destacando-se não só pela maestria narrativa mas também pelo impacto duradouro de suas mensagens.
Resenha/Comentário sobre O Vilarejo, de Raphael Montes
“O Vilarejo” de Raphael Montes foi amplamente elogiado por críticos e leitores. A obra é destacada por sua narrativa intrigante e habilidade em explorar os aspectos mais sombrios da psique humana. As resenhas enfatizam a originalidade dos contos, a profundidade dos personagens e a maneira como Montes tece os pecados capitais na trama. A recepção positiva sublinha o talento do autor em criar um suspense psicológico que mantém os leitores envolvidos do início ao fim, consolidando “O Vilarejo” como uma leitura indispensável no gênero.
Resenha do canal do YouTube Hora do Terror (03/12/17).
Por Que Ler “O Vilarejo”, de Raphael Montes?
Ler “O Vilarejo” de Raphael Montes é mergulhar em uma experiência literária única, onde suspense e horror se encontram com uma profunda análise da natureza humana. Esta obra não apenas entretém, mas também provoca reflexão sobre os dilemas morais e éticos enfrentados pelos personagens em situações extremas. Recomendado para quem aprecia narrativas envolventes e complexas, “O Vilarejo” é uma leitura obrigatória que desafia e satisfaz, deixando marcas duradouras na memória de seus leitores.
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